Apenas 17% concluem internação em ação anticrack da gestão Doria

THIAGO AMÂNCIO E JULIANA GRAGNANI – FOLHA DE S. PAULO

M.F., 45, declara que cansou de roubar celulares para sustentar o seu vício no crack. "Quero me recuperar, mas não estou conseguindo."

Tentou. Procurou auxílio na cracolândia do centro de São Paulo, onde vive, e foi encaminhado para o hospital São João de Deus, zona norte, no fim de junho. Mas saiu seis dias depois. "Não me adequei ao local. Fiquei dias dopado. Daí parei de tomar os remédios. Quando fiquei consciente, pedi para sair", afirma.

Assim como ele, a maior parte dos usuários da cracolândia internados pela gestão João Doria (PSDB) desistem do tratamento contra o crack antes mesmo de completar a etapa inicial de quatro semanas para desintoxicação.

A ação policial que prendeu traficantes e desobstruiu ruas onde funcionava uma feira de droga a céu aberto na cracolândia ocorreu em 21 de maio.

No mesmo dia, Doria deu início ao seu programa anticrack, o Redenção –e, diferentemente de gestões anteriores, priorizou um mutirão para internar os dependentes.

Doria primeiro tentou recolher usuários à força das ruas para reduzir a população da cracolândia, mas foi derrotado na Justiça.

Desde então, foram 842 encaminhamentos voluntários (por vontade do usuário) para desintoxicação em leitos psiquiátricos contratados pela prefeitura –até a semana passada, 108 desses viciados ainda estavam internados.

Entre as 734 internações já concluídas ou interrompidas, só 122 (17%) delas foram levadas até o fim.

A maior parte das internações (536, o equivalente a 73%) foi interrompida a pedido do paciente. O número de desistências pode ser maior: há 76 altas em outras categorias, que incluem transferências e até fuga das clínicas.
 

Para Ana Cecília Marques, coordenadora da comissão de drogas da Associação Brasileira de Psiquiatria, os 17% que concluem o período de desintoxicação é um número "baixíssimo", se comparado à adesão na casa dos 50% que, segundo ela, existe na rede particular, onde atua.

De acordo com a psiquiatra, a diferença pode ser explicada pelo perfil dos usuários. "Em ambulatório particular, não é um paciente que está nas condições em que o Redenção atende. Meu paciente, apesar de muitas vezes em estado grave, tem família, tem apoio em casa", afirma.

Coordenador do programa, o psiquiatra Arthur Guerra diz que o usuário não pode "ficar de forma involuntária". E ressalta que o Redenção "ainda é um programa em gestação".

A gestão tucana tem pouco controle sobre os números do Redenção e falta transparência em relação às informações disponíveis. Os pedidos de dados feitos pela reportagem à Secretaria da Saúde demoravam dias para serem levantados e, em alguns casos, foram retificados em seguida.

Para Ana Cecília Marques, resolver esse problema é o primeiro passo para melhorar a adesão ao tratamento. "A primeira coisa é conhecer a amostra, qual o perfil dos pacientes que estão lá, quantos são dependentes, quantos tem doença mental."

Mauro Aranha, ex-presidente do Conselho Regional de Medicina de São Paulo, diz que, em visitas aos hospitais, o CRM constatou que a equipe de tratamento é mal dimensionada para o número de pacientes.

"Uma equipe de internação mal dimensionada vai fazer com que a ociosidade dos pacientes seja grande. Numa internação, ele não tem só que desenvolver o processo de desintoxicação. Tem que ter atividades não médicas também. Psicoterapia, trabalho de grupo, assistentes sociais vinculando os pacientes com a família e comunidade."

Como funciona a internação psiquiátrica pelo Redenção

Pedido
Pacientes procuram voluntariamente a tenda da prefeitura na cracolândia

Internação
São encaminhados a leitos psiquiátricos em quatro hospitais conveniados: João de Deus, Cantareira, Irmãs Hospitaleiras e Lacan

Permanência
Passam pelo menos quatro semanas na desintoxicação; a duração do tratamento depende de cada caso

Saída
Recebem alta e passam a ser acompanhados, em geral por meio dos Caps (Centros de Atenção Psicossocial municipais) 

ESPERA

"É aqui que vem para ser internado?", pergunta um morador de rua enquanto puxa uma cadeira na tenda do programa Redenção, na região cracolândia, centro de São Paulo. "Precisa de documento?", diz, ao receber a confirmação.

"Precisa só de paciência", responde João (nome fictício), que esperava no local desde o começo da manhã, sem comer.

João, na verdade, só queria voltar ao hospital psiquiátrico de onde saiu dias antes. Lá os funcionários descobriram que ele foi mordido por cachorros de rua e que precisaria consultar um infectologista –que não havia no local.

Ele precisou pedir alta e ir, por conta própria, ao Instituto de Infectologia Emilio Ribas, na zona oeste. Como fez para chegar lá? "Isso é o de menos, a gente da rua dá um jeito", afirma.

Ronny Wesley Gonçalves, 26, também pediu para sair. Ele usa drogas há 11 anos, mas cansou dessa vida. "Chega de dar desgosto para minha mãe." No mês passado, foi internado para desintoxicação no hospital São João de Deus, mas desistiu 20 dias depois.

"Minha mãe não conseguia me visitar, e eu precisava buscar roupa", diz Gonçalves, que afirmou não precisar de mais do que "umas horas" entre o pedido para deixar a instituição, na zona norte de SP, e o momento em que saiu de lá caminhando.

"Quando eu cheguei em casa, minha mãe disparou a chorar", disse o usuário, enquanto tentava ser internado de novo. Ele passou o dia esperando na tenda do Redenção, e até o meio da tarde ainda não sabia se conseguiria ser internado –os usuários dependem da disponibilidade dos leitos e de ambulâncias do Samu para levá-los às clínicas conveniadas.

A Folha ouviu uma série de usuários de drogas na cracolândia e muitos já tinham sido internados para desintoxicação e desistiram pelos mais diversos motivos, que vão desde a alegada falta de estrutura dos hospitais até por vontade de usar drogas.

Para Mauro Aranha, do conselho de medicina, isso mostra que o Redenção ainda "não está suficientemente estruturado para que as pessoas internadas não voltem às drogas e à cracolândia".

"O que a gente quer é a sustentabilidade da atenção. Desde o tratamento médico até a reabilitação psicossocial. Porque se não eles vão sair da internação e voltar à cracolândia", diz o psiquiatra. "Não dá para ser midiático numa situação que é estrutural."

'DESISTÊNCIAS SÃO COMUNS'

O psiquiatra Arthur Guerra, coordenador do programa de combate ao crack da gestão João Doria (PSDB), diz que a recaída "faz parte do quadro clínico nessas doenças crônicas, não só para dependência química".

"A pessoa voltar a ter o problema infelizmente é comum. É chato, não é o que a gente quer", afirma. "Como são internações voluntárias, ele não pode ficar [internado] de forma involuntária", diz.

"Tem paciente que chega, entra, tem uma fissura, uma vontade de usar drogas muito forte, e sai. Isso na clínica mais simples, com pouco recurso, no Hospital das Clínicas, onde tenho meu serviço há 30 anos, em clínicas chiques, caríssimas, em que a internação é voluntária. E sai para usar drogas. É um direito que ele tem. E se arrepende e é internado outra vez."

Para Guerra, "o tratamento para dependência química é sempre de médio para longo prazo. Existem grupos sérios no mundo todo que acham que é para vida toda."

O médico ressalta que o Redenção tem pouco mais de dois meses, "ainda é um programa em gestação".

"Estamos aqui há dois meses. O outro programa [Braços Abertos, da gestão Haddad] era outra coisa, muito bem feita, na minha opinião, com várias coisas boas, usaram seis meses para gestar", diz.

"Nós conseguimos em dois meses mais do que eu tinha projetado. Imaginei que fôssemos estar nesse estágio em seis meses. Em dois meses, avançamos muitíssimo."

Guerra reconhece a dificuldade para levantar números do programa, uma questão que o "faz perder o sono", diz. "Eu devia ter essa resposta na minha frente", afirma.

O médico voltou a afirmar que a prefeitura resolverá esse problema com um prontuário eletrônico para os usuários de crack, que facilitará o acompanhamento dos pacientes, mas não deu um prazo para que o sistema funcione.

A prefeitura divulga semanalmente o número de encaminhamentos para internação, mas, como as desistências são altas, é frequente o mesmo usuário ser internado mais de uma vez, de modo que o número de pessoas encaminhadas é bem menor.

Balanço da prefeitura de 24 de julho, por exemplo, falava em 1.100 encaminhamentos para internação. No entanto, o número de pessoas internadas era menos da metade disso –535, segundo a Secretaria da Saúde.

Questionado sobre se essa é a forma mais correta de divulgação, Guerra afirma que informar "o número de pessoas internadas é mais refinado. [Mas] divulgar o número de internações não é errado."

"Não é um número só", ressalva o psiquiatra.

"Mais importante que isso é a qualidade. O que está sendo recebido de fato? Como ele é atendido? E depois que ele tiver alta? Como lidamos com a família dele? Com o emprego que ele precisa ter? São desafios que precisamos apresentar essas diretrizes, mas, francamente, só vão ficar fortes com a sociedade, com fiscalização, com debate, com questionamento."

Guerra explica que, passado o período inicial de desintoxicação, cada paciente é tratado de maneira individual, de acordo com um projeto terapêutico singular.

Para o psiquiatra, "os usuários estão sendo bem tratados, de forma muito boa, as equipes estão motivadas".

Ele afirma que foi criado um "núcleo gestor" do programa, em que funcionários da prefeitura acompanham o atendimento em hospitais.

Colaborou MARIANA ZYLBERKAN 

Matéria publicada na Folha de S. Paulo.

 

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