Demanda de vaga por creche em São Paulo

Análise sobre o Projeto de Lei (PL 170/2010) aprovado pela Câmara e que determina a realização de um censo municipal sobre a demanda da educação infantil a cada dois anos

Artigo de Cisele Ortiz

A luta por vaga em creche é antiga, tendo surgido dos movimentos assistenciais cansados de ver pobreza e crianças desassistidas pelo Estado. 

A escassez de vagas era tão grande que, nas poucas creches onde elas existiam, a seleção de crianças era feita por uma “medida de pobreza”. Eram selecionadas as famílias mais miseráveis, tendo em vista que a matrícula no equipamento era vista como uma possibilidade de tirar a criança da rua, da fome e da carência afetiva. 

Esta marca assistencial foi forte e até hoje se mantém em algumas realidades, que remetem ao famoso “sopão e banho”. 

É preciso tomar cuidado, pois, em tempos de restrições orçamentárias e de congelamento de verba da educação, o discurso de que para o pobre vale qualquer coisa pode ganhar força. Essa visão está presente quando se defende a instalação de creches em qualquer lugar. “Lidar pobremente com a pobreza” é uma máxima para a qual não podemos retroceder.

Já no final da década de 1960 e inicio dos anos 1970, o movimento de mulheres passou a exigir lugares adequados e seguros para deixarem seus filhos enquanto estivessem no trabalho. As creches passaram a representar a possibilidade de autonomia financeira e o reconhecimento público do trabalho fora de casa. 

E como as vagas ainda continuavam escassas, a seleção se dava pelo trabalho. As mães tinham de provar, com atestado emitido por seus empregadores, que estavam trabalhando. O atestado era cobrado mensalmente, com ameaça de que a criança perderia a vaga, caso a mãe perdesse o emprego. Tratava-se de um mecanismo perverso de dupla exclusão: a mãe perde o emprego e a criança é excluída da creche.

As mulheres começaram a se organizar como podiam para enfrentar essa situação. 

Ainda hoje acontece a guarda de crianças pelas chamadas “mães crecheiras” – mulheres que tomam conta de crianças nas periferias e cidades do entorno de São Paulo. 

Outra forma de enfrentar o problema era por meio dos sindicatos, exigindo que a instalação de creche nos locais de trabalho fosse incluída nas convenções coletivas da categoria.

É importante reforçar que esses movimentos surgem em virtude da falta de vagas, bem como da incapacidade do Estado para criá-las. As propostas de programas domiciliares, como uma forma alternativa e provisória, rapidamente se transformaram em políticas públicas, tendo em vista seu baixo custo e abrangência. 

Foi ainda o movimento de mulheres o principal responsável por colocar o direito à creche na Constituição Federal de 1988 (no capítulo dos direitos sociais). O artigo sete da Constituição, em seu inciso xxv, estabelece como direito do trabalhador ou trabalhadora: a assistência gratuita aos filhos e dependentes, desde o nascimento até os cinco anos de idade, em creches e pré-escolas. 

Pela Constituição, a matrícula da criança não depende mais de comprovação de pobreza ou trabalho. Passa a ser dever do Estado prover as vagas necessárias ao atendimento das crianças cujas famílias desejem matricular seus filhos em creche.

“Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:
IV – educação infantil, em creche e pré-escola, às crianças até 5 (cinco) anos de idade.”

O Estatuto da Criança e do Adolescente, dois anos depois, referenda esta normativa:

“Art. 53. A criança e o adolescente têm direito à educação, visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho, assegurando-se-lhes: 
I – igualdade de condições para o acesso e permanência na escola.”

Entretanto, a pergunta que se coloca em todo esse período é como prover vagas em creche para as crianças de todas as famílias que desejam? 

Para que os gestores municipais possam planejar a construção de creches e a abertura de vagas, eles precisam saber qual a demanda real e não apenas aquela declarada, quando a família se cadastra e entra no sistema. 

A busca ativa pela demanda real demonstra que de fato o gestor está colocando a criança e sua família como prioridades, pois ele sabe que é seu dever oferecer a vaga, com qualidade. Se não o faz, há uma inconstitucionalidade.

O Plano Nacional de Educação (PNE) e o Plano Municipal de Educação reforçam essa ideia:

“Plano Nacional de Educação – PNE 
Meta 1: universalizar, até 2016, a educação infantil na pré-escola para as crianças de 4 (quatro) a 5 (cinco) anos de idade e ampliar a oferta de educação infantil em creches, de forma a atender, no mínimo, 50% (cinquenta por cento) das crianças de até 3 (três) anos até o final da vigência deste PNE.
Estratégias:
1.3) realizar, periodicamente, em regime de colaboração, levantamento da demanda por creche para a população de até 3 (três) anos, como forma de planejar a oferta e verificar o atendimento da demanda manifesta;
1.4) estabelecer, no primeiro ano de vigência do PNE, normas, procedimentos e prazos para definição de mecanismos de consulta pública da demanda das famílias por creches.”

“Plano Municipal de Educação – PME 
META 5. Universalizar, até 2016, a Educação Infantil para as crianças de 4 (quatro) e 5 (cinco) anos de idade e assegurar, durante a vigência do Plano, atendimento para 75% das crianças de zero a 3 anos e 11 meses ou 100% da demanda registrada, o que for maior.
Estratégias:
5.1. Investir na ampliação da oferta de educação infantil de 0 (zero) a 3 (três) anos na rede direta, indireta e conveniada, assegurando sua qualidade.
5.2. Preservar as especificidades da educação infantil na organização da rede municipal, garantindo o atendimento da criança de 0 (zero) a 5 (cinco) anos em estabelecimentos que atendam a parâmetros nacionais de qualidade, e a articulação com a etapa escolar seguinte, visando ao ingresso da criança de 6 (seis) anos de idade no ensino fundamental.
5.3. Construir novas unidades educacionais de educação infantil, considerando a demanda de cada região, os projetos arquitetônicos e os mobiliários adequados à faixa etária, contemplando ainda os critérios de acessibilidade.
5.7. Priorizar o acesso à Educação Infantil até zerar a demanda efetiva nos setores de educação em que existam mais de 20% das crianças de zero a (cinco) anos em Índice Paulista de Vulnerabilidade Social – IPVS Alta e Muito Alta, aferido pela Fundação SEADE, e em setores com menos de 20% de matrículas na faixa de zero a 3 (três) anos.
5.8. Promover, através da Secretaria Municipal de Educação, a busca ativa de crianças em idade correspondente à Educação Infantil, em parceria com órgãos públicos de assistência social, saúde e proteção à infância, preservando o direito de opção da família em relação às crianças de zero até 3 (três) anos.”

É sabido que muitas famílias não se cadastram porque, em algumas regiões da cidade, a espera é longa. O tempo médio estimado de espera de vaga em creche varia muito. 

Confira abaixo dados levantados pelo ONG Fiquem Sabendo, em dezembro de 2016:

Excluídas da creche, muitas crianças perdem a oportunidade de aprender coisas novas, de interagir com outras crianças, de brincar em ambientes adequados a sua faixa etária e de crescer e se desenvolver de forma interativa e saudável, num ambiente que oferece oportunidade de sustentabilidade à família.

Com a aprovação do Projeto de Lei 170/2010, que determina a realização de um censo municipal sobre a demanda da educação infantil (creches e EMEIs) a cada dois anos, quem sabe possamos acompanhar de perto os desejos e as necessidades das famílias de nossa cidade. 

O projeto, aprovado pela Câmara Municipal de São Paulo no dia 19 de abril, também permitirá um melhor acompanhamento da meta a ser definida pela atual gestão para o atendimento à demanda por creche, assim como verificar o cumprimento do Plano Municipal de Educação nessa área. 

Por fim, o projeto, que ainda precisa ser sancionado pelo prefeito, possibilitará uma aferição mais precisa das desigualdades entre as diferentes regiões da cidade em relação à demanda por creche, para que sejam reduzidas. 

Cisele Ortiz é psicóloga, especialista em educação infantil, coordenadora do Instituto Avisa Lá – formação continuada de educadores e integrante do Grupo de Trabalho (GT) Educação da Rede Nossa São Paulo.

Confira também: a entrevista de Américo Sampaio, da Rede Nossa São Paulo, à Rádio CBN sobre o déficit de vagas em creches.

 

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