Fiscalização da Lei Seca engatinha em SP e causa sensação de impunidade

FABRÍCIO LOBEL – FOLHA DE S. PAULO

O Volkswagen Jetta acelera pela madrugada de uma sexta-feira em São Paulo. O velocímetro aponta o dobro da velocidade permitida na av. dos Bandeirantes, área nobre da zona sul da cidade.

No comando do Jetta está o advogado Artur Stoggia, 33, após uma festa na zona oeste, onde havia bebido. Na volta para casa, em alta velocidade e com reflexos diminuídos, ele não consegue evitar a colisão contra o Peugeot 207. Com o impacto, o carro atingido explode e pega fogo.

Dentro dele, o comissário de bordo Alexandre Stoian, 43, morre incinerado. Sua mulher consegue se salvar com ferimentos. "Sinto que todos retomaram suas rotinas e eu não consigo me mover", lamenta Fernanda Stoian, agora viúva de Alexandre.

Duas semanas após o crime, o consultor de vendas Flávio (nome fictício), 30, chega com mais dois amigos à casa de show Villa Country. O local é o mesmo em que o advogado Stoggia estava antes de beber e bater o carro.

Convicto, Flávio afirma à reportagem que irá beber e dirigir. "Sabe como é. Aqui é Brasil", comenta sobre a sensação de que chegará em casa sem passar pela fiscalização.

Após a festa, a reportagem encontra um caminhoneiro de 45 anos que admite que bebeu e irá dirigir. "É difícil alguém que vá para uma balada e não beba", diz. "Acho que faltou tomar um pouco de água antes de dirigir."

Na mesma noite, na Vila Madalena, uma arquiteta de 42 anos, que não quis se identificar, diz ter bebido "um chope" ao pegar as chaves do seu carro com o manobrista. "Acho que é normal, não?".

E, na madrugada de sábado (29), cinco pessoas são atropeladas na rua Augusta por um motorista que havia bebido. Preso em flagrante, o promotor de eventos e estudante de engenharia Paulo Negri, 22, que dirigia o carro, acabou liberado após pagar fiança de R$ 5.000.

O teste do bafômetro feito por ele apontou 0,78 miligrama de álcool por litro de ar expelido, mais que o dobro do limite para não ser considerado crime. As vítimas foram para hospitais da região. Segundo familiares, um dos jovens pode perder um braço. Negri diz que foi fechado por outro veículo e que errou ao dirigir embriagado.

Para especialistas, a chance de casos como esses acontecerem poderia ser reduzida se o Estado de São Paulo conseguisse fiscalizar melhor a segurança do trânsito. Ou se, no campo jurídico, houvesse uma forma mais simples de classificar e punir crimes feitos por motoristas.

BAIXO DESEMPENHO

Dados da Polícia Militar e do Detran confirmam a sensação de que há pouca fiscalização. Em 2016, na capital, foram feitas 147 mil abordagens a motoristas para verificação de embriaguez.

Esse número pode parecer grande, mas, para uma cidade com 8,5 milhões de veículos, seria como dizer que, em 2016, o motorista de São Paulo teve a probabilidade de ser abordado por uma blitz a cada 58 carros. Considerando todo o Estado, foram 619 mil abordagens –proporção de um veículo parado a cada 46.

Já no Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, a relação foi de um em 22 veículos no ano passado. Na capital fluminense, esse índice vai para um a cada 11 –quase cinco vezes melhor do que a cidade de São Paulo.
 

Para especialistas ouvidos pela Folha, a condição geográfica do Rio, que praticamente impossibilita o uso de vias alternativas pelos motoristas, facilita as blitze.

"Ainda assim, a polícia de São Paulo precisa investir em inteligência para saber como abordar o motorista. Tem que variar as vias e os horários em que faz fiscalização", diz o presidente da comissão de direito viário da OAB de São Paulo, Maurício Januzzi.

Segundo o diretor do centro de pesquisa em álcool e drogas do Hospital das Clínicas da Federal do RS, Flávio Pechansky, a função da blitz não é apenas identificar o motorista alcoolizado e retirá-lo das ruas. "Também é dar um sinal claro à sociedade de que essa conduta não é tolerada e, com isso, mudar o comportamento dos motoristas."

O médico cita pesquisas segundo as quais a fiscalização constante de motoristas reduziu em 23% os acidentes nos EUA e em 26% na Austrália.

Pechansky diz ainda que mesmo campanhas educativas têm pouco impacto sem vigilância constante. Fernanda Stoian concorda: "O motorista que causou o acidente tem ensino superior, é advogado. Então não basta educação, é preciso fiscalização e mudar as leis", afirma.

Para o engenheiro de transporte Horácio Figueira, fiscalizar motoristas alcoolizados é uma questão de decidir onde alocar recursos públicos. "O governo deve decidir onde gastar: com prevenção e incentivo à fiscalização ou com 'operação urubu', que é a logística para recolher corpos, tratar lesionados e investigar os crimes de trânsito."

O Detran, responsável por 10% das abordagens no Estado, diz que todo ano aumenta o número de motoristas fiscalizados. Apesar disso, em 2017, pela primeira vez identificou queda na quantidade de autuados por beber e dirigir. Para o órgão, é sinal de uma mudança de comportamento.

A Polícia Militar afirma que faz outros tipos de abordagem, como consulta a documentos, o que ajuda a verificar se o motorista está alcoolizado. A PM diz que faz blitze diariamente visando a segurança no trânsito e que também vem aumentando o total de motoristas abordados.

PUNIÇÕES

As sanções aplicadas ao condutor alcoolizado ou que se recusar a fazer teste de bafômetro são: multa de R$ 2.934, suspensão da CNH por um ano e retenção do veículo. Em caso de reincidência em 12 meses, a carteira é cassada e a multa, dobrada.

Se a pessoa tiver mais de 0,3 miligrama de álcool por litro de ar expelido, além da multa, está prevista detenção de seis meses a três anos. Se cometer um acidente que resulte em morte, por exemplo, ainda terá que responder na Justiça por homicídio. 

Matéria publicada na Folha de S. Paulo.
 

Compartilhe este artigo