Pesquisa do Datafolha revela que motorista se considera vilão no trânsito

Em quase dez anos, número de multas de trânsito mais que triplica e deve se manter em alta; pesquisa inédita do Datafolha revela que motorista se considera vilão

Por Elvis Pereira

"Quem não foi multado no trânsito?", questiona o taxista português Manoel de Freitas, 63, há 15 anos dirigindo em São Paulo. "É como perguntar a alguém se já foi assaltado."

O morador do Brooklin, na zona oeste, coleciona algumas multas no histórico. Ele e uma multidão. Em quase dez anos, a metrópole atingiu a marca de 67,1 milhões de infrações de trânsito registradas.

O volume cresce sem parar. Em 2004, elas se resumiam a 2,9 milhões. Em 2013, mais que triplicaram: 10,1 milhões. Ou seja, 246% a mais.

Neste ano, não será diferente. "Deve aumentar uns 10%", afirma à sãopaulo o secretário municipal de Transportes, Jilmar Tatto, 49, que acumula a função de presidente da CET (Companhia de Engenharia de Tráfego).

Caso a estimativa se torne realidade, serão 11 milhões de infrações na capital, quase uma por habitante. No balanço mais recente, de junho, o saldo era de 4,9 milhões, 4% a mais em relação ao primeiro semestre de 2013.

Há mais multas e há mais dinheiro. O valor arrecadado pela prefeitura passou de R$ 314 milhões em 2004 para R$ 850 milhões no ano passado.

Em 2014, por enquanto, está em R$ 405 milhões. A princípio, esperava-se que superaria R$ 1 bilhão até dezembro. As contas, entretanto, foram refeitas.

"Há a previsão de R$ 905 milhões, porque atrasamos o processo de instalação dos [novos] radares", acrescenta Tatto, que também foi secretário de Transportes na gestão de Marta Suplicy [PT, 2001-2004].

Entre as explicações para os sucessivos recordes de multas uma é recorrente: a proliferação dos radares."Havia na cidade uma parcela de infrações represada, que não era fiscalizada, e o motorista se comportava de qualquer maneira", diz o secretário.

As ruas, de fato, ganharam aparelhos para verificar se o motorista cumpre as regras. Em 2004, existiam 338 radares. Eles se multiplicaram e, até o semestre passado, eram 601.

A presença de mais veículos também é apontada como um fator para a cidade ter tantas multas. "A frota continua aumentando, e há mais pessoas dirigindo mais quilômetros", diz Philip Gold, 66, ex-ombudsman da CET e gerente de segurança de trânsito na empresa na década de 1980.

O total de veículos nas garagens pulou de 5,6 milhões em janeiro de 2004 para 7,7 milhões em junho passado, o equivalente a uma expansão de 37%. Já a frota circulante cresceu menos: de 3 milhões por dia em 2004 para 3,8 milhões neste ano (27%).

A parcela de culpa de quem está atrás do volante aparece representada em pesquisa inédita do Datafolha, feita a pedido da sãopaulo entre os dias 29 e 30 de julho deste ano.

Para 62% das pessoas que afirmaram dirigir na capital, o principal responsável pelo alto volume de multas é o próprio motorista (leia mais na pág. 28).

O lado do motorista

Quem enfrenta o trânsito diariamente cita diversos motivos na tentativa de explicar por que há tamanha soma de infrações.

"Se você está em um carro bom, às vezes anda um pouco mais e nem percebe…", diz o mecânico Adriano de Morais, 37, que mora em Osasco e trabalha na capital.

Ele calcula ter sido multado "umas 20 vezes" ao longo de duas décadas. Duas infrações são recentes e tiveram como cenário a marginal Tietê. "Não vi a placa de limite de velocidade."

O problema é o famoso "jeitinho", conta Maurício Aparecido Vieira, 34. Há 12 anos, ele é motofretista e diz ter sido multado ao menos cinco vezes, duas delas neste ano.

"O brasileiro peca muito no trânsito, tanto o motoqueiro quanto o motorista", conta ele, para em seguida apontar, rindo, na direção de um motoqueiro que guiava na contramão. "O brasileiro quer levar vantagem em tudo."

"A última multa que levei foi de velocidade, há um ano, e foi uma pegadinha", afirma o taxista Manoel de Freitas. "O motorista tem culpa, e a multa ajuda a educar. Porém, o objetivo do governo não é só mudar a nossa maneira de dirigir, mas, sim, arrecadar."

A existência de uma "indústria", cujo objetivo seria única e exclusivamente reforçar o caixa da prefeitura, é crença antiga na cidade.

"Quando comecei a trabalhar na CET, em 1977, já se falava disso", diz Philip Gold. Na década de 1980, segundo ele, chegou-se à conclusão na companhia de que o sistema era apelidado de indústria por gerar arrecadação e não afetar o comportamento dos motoristas.

"Hoje, se você parar de multar, vai piorar infinitamente o comportamento de quem dirige", diz o ex- ombudsman. "E não é uma indústria, porque está tendo o efeito desejado. Embora o número [de infrações] aumente, o de óbitos e o de lesões diminuíram."

É fato: estão ocorrendo menos mortes no trânsito paulistano, de acordo com relatórios anuais da CET. No ano passado, 1.152 pessoas perderam a vida em acidentes, o menor número desde 1979, início da série de dados da companhia.

"Não existe isso de indústria. Procuramos ter a preocupação de sinalizar as vias nas quais há radar. Não seria necessário [pela lei], e nós anunciamos", afirma Tatto, multado pela última vez no ano passado, fora da capital. "Foi excesso de velocidade, na rodovia dos Imigrantes. Sabe aquela coisa de baixar de 130 km/h para 90 km/h?"

Secretário municipal de Transportes de 2007 a 2010, na gestão de Gilberto Kassab (PSD), o advogado Alexandre de Moraes, 45, igualmente nega que exista tal indústria. "Posso afirmar, pelos três anos que fiquei lá, que na mentalidade da CET não há isso. O marronzinho não ganha por multa, não é promovido."

Erros na aplicação de multas contribuem para o clima de desconfiança. Segundo reportagem do "Agora" do último dia 19, motoristas reclamavam que haviam sido multados injustamente na avenida Rio Branco, no centro.

Em razão de obras, parte do corredor de ônibus da via foi desativado, e carros puderam passar a circular nele normalmente. Condutores, entretanto, acabaram multados por invasão à faixa. No fim, a CET anunciou que cancelaria as infrações.

Dois anos atrás, a companhia instalou radares nas laterais de passarelas e viadutos. A prática contrariava regra do Contran (Conselho Nacional de Trânsito), pois eles devem estar em local visível para o motorista. Os equipamentos foram "realocados", mas o Ministério Público ainda apura a instalação deles nessas posições.

Mais radares

O volume de multas aplicadas deve se manter em alta pelos próximos anos. Em março passado, a CET assinou contratos para expandir a fiscalização eletrônica, concluindo um processo de licitação iniciado em 2013.

O plano consiste em trocar modelos antigos e levar o radar a mais ruas e avenidas. Até dezembro deste ano, estarão distribuídos pela cidade 843 equipamentos, 242 a mais.

A nova safra, que é mais potente e flagra mais infrações, começou a surgir nas ruas no fim de julho. Ao todo, 15 já multam em 24 locais. "Imagino que em toda semana esteja sendo instalado um radar", diz o secretário Jilmar Tatto.

Da lista de ideias da CET ainda consta a colocação de câmeras em ônibus para flagrar o motorista que invadir o corredor ou a faixa exclusiva do coletivo.

Por enquanto, não se sabe quantos serão. Mas há a previsão de que sejam instalados a partir de dezembro deste ano.

O reforço da fiscalização desagrada parte dos motoristas. "Não adianta colocar um monte de radares", queixa-se a advogada Daniela Riquelme, 36. "A cultura do brasileiro dificilmente mudará."

No fim de 2013, ela foi multada por passar um semáforo vermelho à noite. Temia ser assaltada. "Hoje, paro porque ando com carro blindado. Quando não tinha, não parava."

"Não são necessários mais radares", diz o estagiário de engenharia de produção Tiago Lauria, 25. Ele relata ter sido multado mais de dez vezes, por infrações como dirigir enquanto falava ao celular.

"Você vê a prefeitura multar, multar e não vê o dinheiro ser revertido em benefícios para o trânsito, para o transporte", afirma o estagiário.

Segundo o site de transparência da prefeitura, em 2013 foram aplicados mais de R$ 883 milhões do Fundo Municipal de Desenvolvimento de Trânsito, que concentra a arrecadação com multas, em ações como serviços de engenharia de tráfego.

A colocação de mais radares nas ruas foi um dos pontos abordados na pesquisa do Datafolha. Para 33% dos motoristas entrevistados, a medida pode contribuir para a redução do número de infrações cometidas.

Outra ideia teve mais aceitação. Entre os condutores, 44% acreditam que a redução no limite de pontos na carteira de habilitação, de 20 para 10, ajudaria a diminuir o volume de multas. Em outras palavras, tornar a lei mais rígida.

"Não concordo que isso resolveria por si só", afirma o ex-secretário Alexandre de Moraes, professor de direito na USP e no Mackenzie. "Há uma brincadeira na área jurídica: se sanção mais grave resolvesse o crime, bastaria colocar pena de morte em tudo no mundo todo."

Na opinião dele, é necessário "corrigir" brechas na lei, como impedir que o proprietário do veículo possa transferir os pontos da multa para a carteira de outro condutor.

O deputado federal Hugo Leal (Pros-RJ), 52, da Comissão de Viação e Transportes da Câmara, diz ser preciso tornar mais rápida a análise dos processos de quem atinge o limite de pontos. "A morosidade é que tem gerado a sensação de impunidade." Atualmente, a conclusão dos casos pode se arrastar por mais de um ano.

"Só a multa não resolve. O que resolve o problema é uma educação, que é complexa", diz o antropólogo e escritor Roberto DaMatta, 78, que analisou como age o motorista brasileiro no livro "Fé em Deus e Pé na Tábua".

Nos EUA, segundo ele, a multa chega com um sermão. "O guarda para o carro, diz por que parou, multa e dá uma lição de moral, passa um sabão. Isso não acontece aqui."

Para o antropólogo, é necessário investir na formação do motorista, para que ele aprenda, desde jovem, a se comportar de forma respeitosa no trânsito. "Você tem de aceitar e internalizar o fato de que os outros [motoristas e pedestres] são iguais a você."

Matéria originalmente publicada na Revista São Paulo, do jornal Folha de S. Paulo

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