Cidadãos fazem outra cidade

 

Fonte: Revista Desafios do Desenvolvimento – IPEA

Por Claudia Izique, de São Paulo

No dia 10 de dezembro de 2007, vinte dias antes de encerrar seu mandato,o prefeito de Bogotá, na Colômbia, Luis Eduardo Garzón, submeteu-se à última avaliação de seus quatro anos de governo. Em sessão pública promovida pelo projeto Bogotá como Vamos, um grupo de especialistas comparou os resultados da administração com os compromissos firmados no início do mandato. Concluiu-se que, em algumas áreas, o balanço tinha sido positivo: Garzón cumpriu, por exemplo, 98% das metas estabelecidas para a área de educação, atendeu praticamente a todas as expectativas do programa Bogotá sem Fome e ainda conseguiu reduzir o número de homicídios, de 30 para 17,9 por 100 mil habitantes.Apesar do desempenho insatisfatório na atenção integral à saúde e na alfabetização de jovens e adultos, sua gestão foi considerada transparente e responsável. Garzón deixou o governo com nota 3,38, numa escala de 1 a 5.

O modelo de administração por resultados e de acompanhamento periódico e sistemático da gestão municipal com base em indicadores de qualidade de vida, patrocinados pelo projeto Bogotá Como Vamos, começa a ser replicado no Brasil. A Câmara Municipal de São Paulo deverá votar nos próximos meses uma proposta de alteração da "Constituição"municipal para obrigar os próximos prefeitos da capital a cumprirem um programa detalhado de governo para todo o mandato. O projeto foi aprovado por unanimidade pela Comissão de Constituição, Justiça e Legislação Participativa da Câmara Municipal e está sob análise das comissões de Administração Pública e de Finanças, antes de seguir para a votação em plenário.A expectativa é que o prefeito eleito no pleito municipal de outubro deste ano assuma o cargo comprometido com um plano de metas cujos resultados serão avaliados a partir de seu impacto sobre os principais indicadores de qualidade de vida da cidade.

O projeto teve origem no movimento Nossa São Paulo: Outra Cidade, do Instituto São Paulo Sustentável (ISPS) – entidade constituída em 2007, inspirada na experiência colombiana -, que reúne cerca de 30 empresas e 393 organizações da sociedade civil com o objetivo de recuperar a confiança da população nos processos políticos, valorizar a democracia participativa e promover o desenvolvimento sustentável da cidade."O movimento tem como eixo a mudança na forma de fazer política e nossa estratégia é comprometer o governo municipal com um programa de metas que envolva desde a transparência na gestão pública até mudanças nos indicadores sociais", diz Oded Grajew, membro da secretaria executiva do ISPS.

O que está sendo avaliado pela Câmara Municipal paulistana é uma "adaptação" da legislação colombiana, explica o advogado Paulo José Villela Lomar, especialista em direito urbanístico e autor da proposta. Apesar de a Constituição brasileira não contemplar o voto programático – que, no caso da Colômbia, permite aos eleitores destituir do cargo o prefeito ou vereador que, durante o mandato, revelar-se infiel ao seu programa de governo – , há brechas na legislação do Plano Diretor dos Municípios para mudanças. "Embora não funcione plenamente, a Lei do Plano Diretor fixa objetivos, diretrizes e define ações estratégicas para um período de dez anos.A nossa intenção é vincular o prefeito a esse plano, complementando a legislação do Plano Diretor", diz. Em termos jurídicos, tratase de um projeto de lei que altera a Lei Orgânica do Município e que tramita com o nº 08/2007.

A própria Prefeitura de São Paulo não se opõe. "É um direito de o eleitor ver cumprir as propostas que foram divulgadas na campanha eleitoral", afirma o secretário de Participação e Parceria do município de São Paulo, Ricardo Montoro. "O político-gestor, no entanto, também deve ter o direito de informar ao público que determinadas propostas não podem ser implantadas por serem impraticáveis no emaranhado orçamentário", ressalva. Ele diz que a divulgação de indicadores de desempenho por parte da prefeitura – nos moldes do projeto colombiano – "não representa necessariamente algo fora da possibilidade". Mas considera que a análise da evolução desses indicadores deveria ser atualizada anualmente e no âmbito de um amplo processo de discussão com a sociedade.

O secretário municipal informa que também conhece de perto a experiência de Bogotá. "O movimento colombiano propõe o desenvolvimento da cidade por meio do viés da qualidade de vida e da transparência na divulgação das propostas de governo, assim como das ações e uso do dinheiro público", sublinha.Mas diz que ainda tem dúvidas quanto à"adequação" desse modelo de participação cidadã numa cidade como São Paulo, que, segundo ele, é marcada pela diversidade. "Aqui, tudo é múltiplo e pluralista e requer ações que valorizem a integração dessas muitas comunidades. Não estamos numa cidade linear. Há uma necessidade premente de valorização e inclusão das diversas minorias que tornam a cidade esse palco multifacetado", analisa Montoro. Reconhece, no entanto, que a transparência e o exercício constante de avaliação dos bens e serviços oferecidos pela administração pública não devem ter limites. "O futuro caminha para gestões cada vez mais democráticas e transparentes, com decisões colegiadas. Não poderemos fugir disso."

O movimento Nossa São Paulo:Outra Cidade aposta na aprovação do projeto e já prepara um conjunto de indicadores de qualidade de vida que, na expectativa de Grajew, será uma espécie de "agenda" para os candidatos à prefeitura do município e um gabarito para a avaliação do desempenho de sua gestão. "Estamos trabalhando na coleta dos dados para compor um quadro amplo de indicadores", adianta.

Esses indicadores serão analisados e debatidos por diversos grupos de trabalho no Fórum Nossa São Paulo, a ser realizado entre os dias 15 e 18 de maio, com o objetivo de elaborar sugestões para os diversos desafios sociais, econômicos, políticos, ambientais e urbanos. As propostas serão apresentadas à sociedade, aos poderes públicos e aos partidos políticos que disputarão as próximas eleições municipais. Ainda no primeiro semestre será lançada uma pesquisa qualitativa sobre a percepção dos cidadãos em relação aos principais problemas da cidade – educação, saúde, corrupção, segurança pública, assistência social, desigualdade, entre outros."Os resultados serão o marco zero para a construção de uma São Paulo mais justa, mais segura, mais bonita e sustentável", diz Grajew.

ILHABELA São Paulo provavelmente não será a única cidade brasileira a contar com uma legislação que comprometerá o próximo prefeito com seu programa de governo. Em novembro de 2007, o movimento Nossa Ilha Mais Bela encaminhou à Câmara de Ilhabela,município do litoral paulista, anteprojeto de emenda à Lei Orgânica que obriga o administrador municipal a apresentar um plano de metas baseado em indicadores, em até 90 dias após assumir o mandato. Também no caso de Ilhabela, o objetivo é aumentar a transparência dos diversos setores do governo, garantir compatibilidade das ações do prefeito com o programa eleitoral e permitir o acompanhamento público dos investimentos, obras, projetos e serviços realizados pelo poder público.

A equipe coordenadora do movimento trabalha na coleta de dados e na confecção de indicadores de qualidade de vida para formar um banco de dados que ficará à disposição dos poderes Executivo e Legislativo e acessível a toda a população. A pesquisa que avalia a relação dos cidadãos com a cidade ficou pronta em outubro. Ilhabela é percebida como um lugar privilegiado, com vocação econômica para o turismo, mas com graves problemas estruturais – como, por exemplo, na área de saneamento -, cuja solução deverá ser cobrada do próximo prefeito.

RIO DE JANEIRO A experiência de Bogotá também foi fonte de inspiração do Rio Como Vamos, um movimento de cidadania em prol da qualidade de vida. A primeira iniciativa foi reunir informações que permitissem diagnosticar os principais problemas da cidade e construir indicadores para monitorar o avanço da gestão municipal em áreas como violência, segurança e orçamento público.

Com base nos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), e de outras estatísticas disponíveis, constatou-se, por exemplo, que, apesar de a violência ser a maior preocupação dos cariocas, a taxa está menor que a de meados dos anos 1990, enquanto, por exemplo, Belo Horizonte, Curitiba e Recife apresentam taxas crescentes. Em compensação, o Rio de Janeiro registra o pior índice de acesso à matrícula no ensino fundamental da rede pública dos últimos dez anos, comparado a dez regiões metropolitanas. E mais: o único serviço básico de acesso universal na cidade do Rio é o fornecimento de energia elétrica.

O segundo passo foi realizar uma pesquisa de percepção pública sobre a vida na cidade, utilizando metodologia de grupos focais, apresentada em novembro do ano passado."Essa técnica é adequada para estudos exploratórios que visam obter percepções, conceitoschave e idéias que organizam o pensamento em torno de fatos e eventos", justifica Samyra Crespo, uma das fundadoras do Rio Como Vamos e integrante do Instituto de Estudos da Religião (Iser). Violência, saúde pública, sujeira e má conservação da cidade foram os problemas mais recorrentes. As entrevistas revelaram uma baixa participação dos cidadãos na vida da cidade. Segundo Samyra, poucos se lembravam em quem haviam votado nas últimas eleições municipais e atribuíam ao prefeito a responsabilidade de toda a sua insatisfação.

Esse conjunto de informações subsidiará a construção de uma cesta de indicadores englobando treze temas: saúde, educação, segurança pública e violência, pobreza e desigualdade,meio ambiente, lazer e esportes, cultura, habitação e saneamento, inclusão digital, trabalho, emprego e renda, orçamento e vereadores. "Ainda falta definir os indicadores para algumas áreas, como a de cultura, por exemplo", ressalva Roberta Oliveira, coordenadora técnica do Rio Como Vamos. A idéia é, a partir desses indicadores, mapear áreas mais carentes da cidade e identificar os setores da administração que necessitem de mais atenção e investimentos. O passo seguinte será cobrar ações do Executivo e do Legislativo municipais.

UTOPIAS As pesquisas de opinião funcionam como uma espécie de bússola para as ações e as campanhas desses movimentos. No ano passado, o Nossa São Paulo: Outra Cidade encomendou ao Ibope uma pesquisa qualitativa para conhecer as expectativas e frustrações dos paulistanos. Depois de consultar grupos de diferentes faixas etárias e classes sociais e de ouvir lideranças comunitárias e representantes de movimentos sociais, concluiu que a população tem sentimentos dúbios em relação à cidade. A grande maioria dos entrevistados define São Paulo como "caótica", destacando problemas de trânsito, carências de transporte público e dificuldades de acesso aos serviços e bens disponíveis. Muitos, no entanto, declararam-se "apaixonados" pela cidade e confessaram que têm um sonho, qualificado como "utopia": o de resgatar o orgulho de ser paulistano.

A análise dos resultados levou à conclusão de que a priorização da agenda econômica, em detrimento do "capital humano"e da sustentabilidade da cidade, acabou por provocar um distanciamento entre os cidadãos e o acirramento das diferenças sociais. Nesse fosso instalaramse a violência, o apartheid social e a desigualdade de oportunidades.

Para mudar esse quadro e construir uma cidade sustentável e justa, além dos programas de indicadores e metas e do acompanhamento cidadão da gestão municipal, o movimento Nossa São Paulo quer fortalecer a cultura cidadã por meio da revalorização do espaço público, da melhoria da auto-estima dos paulistanos e do sentimento de "pertencimento a uma cidade que deveria ser de todos". Também estão previstas ações de promoção de parcerias entre empresas, organizações sociais e órgãos da prefeitura; a constituição de fóruns de debate em todas as regiões da cidade; o apoio à constituição de movimentos semelhantes em outras cidades; e a formação de grupos de trabalho e redes sociais em todo o país.

SEM CARRO Em defesa da cultura cidadã, por exemplo,o movimento aderiu à campanha do Dia Mundial Sem Carro, iniciativa adotada pela primeira vez na França em 1997 e comemorada em São Paulo desde 2005, sob a coordenação da Secretaria Municipal do Verde e do Meio Ambiente (SVMA). No ano passado, a data escolhida foi o dia 22 de setembro, um sábado.Ainda assim, a adesão da população foi baixa: a Companhia de Engenharia de Trânsito (CET) registrou picos de 5 km de congestionamento e a SVMA declarou estado de atenção para os níveis de ozônio no Parque do Ibirapuera e na região da Universidade de São Paulo (USP).

Para Grajew, o mais importante foi a "mensagem passada", já que o objetivo da campanha é ampliar a participação da população no debate sobre novas perspectivas para São Paulo. Visto por este ângulo, o Dia Mundial Sem Carro foi um sucesso: o Ibope ouviu 850 paulistanos na semana seguinte ao evento e constatou que a campanha teve alta visibilidade, com índices entre 60% e 70% de aprovação entre os entrevistados.

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