Como o irlandês James Crowe ajudou a transformar o Jardim Ângela, bairro de São Paulo antes notório pelos crimes e hoje modelo de combate à violência
Ana Aranha
James Crowe nasceu na Irlanda, em 1945, e cresceu na área rural no condado de Clare. A cidade mais próxima tinha 50 mil habitantes e ele não se recorda de jamais ter encontrado a porta de casa trancada. Alternava os estudos com o trabalho na fazenda da família, onde ordenhava as vacas, plantava batata e jogava futebol com os nove irmãos. Católicos como a maioria dos irlandeses, seus pais não perdiam a missa aos domingos. Aos 17 anos, James teve de se decidir entre a faculdade de Agronomia e o seminário. Os amigos missionários que traziam histórias de comunidades isoladas na África o convenceram a optar pelo seminário. No ano em que foi ordenado padre, porém, o papa João XXIII cobrava mais atenção à América Latina. Assim, aos 24 anos, James desembarcou em São Paulo.
Quatro décadas depois, o padre Jaime atravessa o centro do Jardim Ângela, na periferia de São Paulo. O bairro de 280 mil habitantes foi considerado o mais violento do mundo em 1996 pelas Nações Unidas. Uma moradora se aproxima para cumprimentá-lo. Ele segura sua mão, dá um beijo e pede a bênção. Ela ri: “Bença o senhor, padre!”. A um quarteirão da igreja, ele entra na base de Polícia Comunitária, aperta a mão de todos e brinca com um palmeirense. “Esse aí veio da Europa torcer pelo Corinthians”, diz o policial. “Tem de ter mais classe, padre. Save the Queen!” Padre Jaime o corrige: “God save the Queen!” (“Deus Salve a Rainha”, nome do hino da Inglaterra). E retoma o português carregado de sotaque: “O senhor sabe que essa frase é considerada uma ofensa na Irlanda?”. Os dois dão risada. A parte sul da Irlanda, onde o padre nasceu, se tornou independente da Inglaterra em 1922.
A auto-ironia e o carisma são os principais instrumentos de Jaime (como é chamado pelos íntimos) em sua missão ao Brasil. Atravessar o quarteirão e entrar na polícia é uma de suas conquistas. Em 1996, ele decidiu que, como padre do bairro mais violento do mundo, não podia seguir apenas “enterrando e rezando missa de sétimo dia”. No dia 2 de novembro daquele ano, Dia de Finados, organizou a Caminhada pela Vida e pela Paz, que refazia o trajeto ao qual já estava habituado: da igreja ao cemitério. Ao contar 5 mil pessoas andando a seu lado, viu o potencial de mobilização que o tema gerava. Liderou então a criação do Fórum em Defesa da Vida e pela Superação da Violência, grupo que até hoje enche os bancos da igreja toda primeira sexta-feira do mês. São mais de 200 entidades e organizações sociais da região. Juntas, ganham poder de reivindicação diante do governo. Graças ao grupo, o bairro ganhou seu primeiro hospital neste ano.
Nas primeiras reuniões do Fórum, padre Jaime lançou a necessidade de uma polícia diferente. “Aqui só chegava a Rota, naquelas viaturas escuras, com metralhadoras para fora, amedrontando o povo”, afirma. Entre reuniões na igreja e no governo do Estado, falava sobre uma polícia que conhecesse os moradores e fosse conhecida por eles. Em 1999, o modelo foi implementado por meio da Polícia Comunitária. Uma das primeiras bases do Estado foi construída no Jardim Ângela. De lá para cá, a violência caiu 76%. O índice de homicídios chegou a 128 para cada 100 mil habitantes em 2000. Seguindo a mesma proporção, hoje está em 28. “O crime caiu em todo o Estado, mas no Ângela caiu mais graças à parceria com o grupo de Jaime”, afirma o sociólogo Túlio Kahn, coordenador de análise e planejamento da Secretaria de Segurança Pública. “O bairro virou vitrine de como a sociedade e a polícia podem trabalhar em conjunto”. A base do bairro hoje localiza criminosos foragidos por causa de denúncias feitas pela população. A última chegou em uma bola de papel, jogada pela janela dos fundos da base.
“Eu não podia continuar apenas enterrando e rezando missas de sétimo dia”
Quando recebe chamados de mulheres que sofrem violência doméstica ou crianças vítimas de abuso sexual, a polícia encaminha as vítimas para a Sociedade Santos Mártires, da qual o padre é presidente. Além desses serviços, a entidade tem 30 núcleos de atendimento entre creches, cursos profissionalizantes e uma unidade de internação para dependentes químicos. A rede chega a 11 mil moradores por mês.
A rotina do padre Jaime ficou corrida, ele lamenta não conseguir mais tomar cafezinho com os vizinhos. Só consegue relaxar no fim do dia, quando senta para tomar caipirinha com os amigos. Sempre que tem tempo, acende seu cachimbo. “Só fumo Irlandês”, diz, mostrando a palha que, apesar do nome, é uma marca feita no Brasil. “O pessoal aqui o chama de padre do cachimbo e da caipirinha”, diz Fábio Vicente de Souza, que trabalha na administração da Sociedade.
Ano sim, ano não, padre Jaime volta à Irlanda para ver a família, que mora na mesma fazenda de sua infância, e celebrar o casamento dos sobrinhos. Já casou 12. A viagem serve para “não deixar os olhos se acostumar” com os problemas do Jardim Ângela: “Os rostos de fome, as casas sem acabamento… O maior pecado é achar isso normal”.
Padre Jaime carrega o espírito da Igreja que encontrou quando chegou ao Brasil em 1969. No auge do regime militar, desembarcou uma semana depois da prisão de um grupo de padres dominicanos que apoiavam a resistência à ditadura. No ano seguinte viu dom Paulo Evaristo Arns assumir a arquidiocese de São Paulo e vender o Palácio Episcopal para construir centros comunitários na periferia. “Era um momento positivo, totalmente diferente da Europa, onde o próprio João XXIII dizia que a Igreja estava acomodada”, diz o padre, que chama de “questionadora” sua relação atual com a Igreja.
A reportagem de ÉPOCA pede ao padre que indique uma família que simbolize a recuperação do bairro. Ele faz um longo silêncio: “Só me lembro de casos tristes”. Conta, então, a história de uma família vizinha à igreja que, em 2002, perdeu um dos dez filhos para o tráfico. Depois de orar no velório, o padre se aproximou de um dos irmãos do morto. “Olha bem para ele, Jaime”, disse o jovem de 16 anos. “Está melhor do que eu. Viver para quê?” Em menos de um ano, padre Jaime estava de volta ao cemitério para rezar pelo corpo do jovem desencantado, morto pelo tráfico como o irmão mais velho. “Os pais desses meninos estão deprimidos até hoje”, afirma. “Não há o que se diga para consolar”. Padre Jaime sabe que recuperar famílias que enterraram seus filhos é mais difícil que reduzir índices de violência. É missão para o padre, o militante, o vizinho e quantos papéis mais ele conseguir desempenhar.