“Era uma vez um rio” – O Estado de S.Paulo


Uma viagem pelo sistema Tietê-Pinheiros-Billings revela o esgotamento dos recursos hídricos da cidade

Adriana Carranca

Há uma ironia quando se diz que os 76 quilômetros dos Rios Tietê e Pinheiros são o único trecho ainda navegável da cidade de São Paulo. Para percorrê-los, é preciso vencer duas barragens, que controlam o fluxo da água para evitar enchentes, uma eclusa, usada para elevar ou descer embarcações de um nível a outro dos rios, duas estações de flotação, que retiram da água parte do esgoto, e muito lixo. Nos dois dias em que fizemos essa viagem, o motor da voadeira pifou cinco vezes no Tietê, com pedaços de plástico enroscados na hélice, e fundiu no Pinheiros.

O crescimento da mancha urbana – que dobrou de 1975 a 1995 e hoje ocupa 2.209 quilômetros quadrados – foi impiedoso com rios e mananciais. Forçou a canalização do Tamanduateí e do Anhangabaú, alterou o traçado do Tietê e do Pinheiros e avança sobre as Represas Billings e Guarapiranga, na zona sul. Com ocupação proibida desde 1976, as áreas das duas represas tornaram-se rentáveis nas mãos de grileiros: hoje 2 milhões de pessoas, pouco menos de 20% da população da capital, vivem no seu entorno.

Com limitada possibilidade de regularização, os loteamentos crescem sem infra-estrutura, como rede de esgoto ou coleta de lixo. "Não há como recuperar o rio se não tratar afluentes e córregos que trazem todo o lixo das ruas e o esgoto das favelas", resume o barqueiro Laudo Blanco Cezário, de 61 anos, funcionário do Departamento de Água e Energia Elétrica (Daee). Governo e Prefeitura iniciaram um programa de limpeza de 40 córregos, para o qual estão previstos este ano R$ 200 milhões.

Os loteamentos irregulares não são os únicos responsáveis por esse quadro: 37% do esgoto gerado por 15,6 milhões de pessoas atendidas pela Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) em 30 municípios da região metropolitana é jogado in natura nas águas do Tietê e do Pinheiros, por falta de tratamento. As outras 9 cidades da Grande São Paulo têm sistemas próprios de saneamento, mas tratam porcentuais baixos de esgoto. Mesmo 2,6 milhões de imóveis regularizados não contam nem com a coleta.

Maior rio do Estado, o Tietê atravessa 34 municípios da Grande São Paulo. Nasce em Salesópolis, na Serra do Mar, e segue por 1.200 quilômetros até o Rio Paraná, na divisa com Mato Grosso do Sul. Da Bacia do Alto Tietê saíram areia e pedras para as primeiras construções de São Paulo e a energia para o desenvolvimento da região metropolitana. "Do ponto de vista do poder público, os rios de São Paulo nunca foram rios, mas fonte de energia e mecanismo para controlar enchentes", afirma o engenheiro Ubirajara Felix, superintendente do Daee. "Não havia preocupação com ambiente nos anos 1920. A lógica era a do progresso: energia para sustentar a indústria e criar empregos."

A primeira hidrelétrica da Light no Tietê foi a Usina de Parnaíba, de 1901. Nos anos 1920, a eletricidade produzida já era insuficiente. Em 1934, com a aprovação do Código das Águas, legislação federal, o uso dos rios para energia foi priorizado. O Tietê foi retificado e formou-se um canal de 26 km do Pinheiros, que teve o fluxo invertido para a Billings. Da represa, a água cai por 750 metros em tubulações até a Usina Henry Borden, em Cubatão, com capacidade de 889 quilowatts/hora. Até hoje, a principal função do sistema Tietê-Pinheiros-Billings é manter a usina funcionando. Mas a necessidade de fornecer energia para o progresso também abriu espaço para a especulação imobiliária. Só a retificação do Pinheiros rendeu à Companhia Light 25 km² de terras, onde hoje estão os Shoppings Villa-Lobos, Iguatemi, Eldorado e Morumbi, as mansões da Cidade Jardim, os valorizados prédios de escritório da Avenida Engenheiro Luís Carlos Berrini, o câmpus da Universidade de São Paulo e a congestionada Marginal.

Percorrer os 24,5 km do Tietê – da Barragem da Penha, zona leste, ao anel viário do Cebolão, no lado oeste, onde ele e o Pinheiros foram ligados numa estação elevatória – só é possível graças à ampliação da calha, concluída em 2006. O leito foi aprofundado em 2,5 metros e a base, alargada de 22 para 46 metros. Em quatro anos, foram retirados 6,8 milhões de metros cúbicos de lodo e rochas e 12 toneladas de lixo por dia, incluindo 120 mil pneus.

Com o alargamento da calha do Tietê, a imundície se dilui, mas a água, de tão densa, parece segurar o barco. "Adoro isto aqui", diz o barqueiro Cezário, tirando da água uma bola de futebol – foram três até o fim do passeio. Na altura do Anhembi, na zona norte, um porco morto bóia ao lado do barco. Cezário afirma que já viu muito corpo de homem boiando também.

Marciliano Nogueira, de 61 anos, morador de rua há 3, vive num albergue na Casa Verde e lava roupa no Tietê, numa tubulação de drenagem, porque dali a água "sai mais limpa". "É a que vem pelos bueiros, não tem esgoto." Só lamenta que, com a limpeza das margens, feita por uma escavadeira, não consiga mais reunir as 65 latinhas de alumínio suficientes para vender 1 quilo, pelo qual receberia R$ 3,80. Já Cleverson de Souza, de 30, tenta reconstruir a vida perto da Ponte Aricanduva. Ele deixou mulher e dois filhos em Valparaíso (GO), para trabalhar numa obra em Pirituba, zona oeste. A obra foi embargada logo no primeiro mês, em janeiro. Cleverson arrumou bico de "chapa", ajudando motoristas a descarregar caminhões. Assim conheceu os dois amigos com quem divide um cano de concreto escuro, úmido e forrado de lodo, coberto por um tapete e com um estrado sem colchão, achados na rua. Comida não tem, para não atrair ratos. "Quero juntar dinheiro para voltar para casa", diz Cleverson. Enquanto isso, vive no rio.

Para chegar às margens do Pinheiros, o bote tem de vencer o lixo e a espuma do sabão e detergente das casas. José Raimundo, de 31, o segundo barqueiro da viagem, navega pelo rio há 8 anos. Conhece cada família de capivaras – cerca de 70 animais, habituados à poluição. No percurso, ilhas de entulho: latas de óleo, um pote de creme Nívea, uma lata de Nescau, uma garrafa de água Cristal, outra de Coca-Cola, um pé de chinelo Havaianas. "O Pinheiros não foi desassoreado. Está no limite da poluição."

Nos 4 km finais do Pinheiros, antes da Billings, chegamos a duas estações de flotação, em teste. Lá, bolhas de oxigênio são injetadas na água, fazendo boiar parte da poluição, levada para uma estação de tratamento. Com isso, a Empresa Metropolitana de Águas e Energia (Emae) quer retomar o bombeamento de água para a Billings, proibido em 1989, porque a poluição ameaçava o abastecimento na capital. Com o veto, a água poluída antes jogada na Billings voltou a correr para o interior. As cenas da espuma invadindo cidades como Bom Jesus de Pirapora provocaram uma inédita reação da sociedade em defesa dos rios e mananciais.
 
Os paulistanos sonham em ter rios limpos como o Tâmisa, de Londres, ou o Sena, de Paris. Mas perto deles Tietê e Pinheiros são fios d’água. O Tâmisa tem 23 metros de profundidade e o Sena, 29. Ambos deságuam diretamente no mar, o que dilui os dejetos ainda lançados nas águas. O Tietê tem 5 metros de profundidade. Sua vazão, na seca, é de 40 m³/s – e metade disso é esgoto. Ou seja, ele é muito mais prejudicado pela falta de tratamento. "E o povo tem de saber que a bituca de cigarro que joga na rua, a garrafa PET, o papel, tudo acaba neste rio", diz Cezário.

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