“Uma Guarapiranga por dia ” – O Estado de S.Paulo

 

A cada 24 horas, vazamentos e desperdício sugam o equivalente a uma represa e põem São Paulo no limite da seca

Herton Escobar
 
A Organização das Nações Unidas prevê que, nos próximos 25 anos, o acesso à água pode ser a principal causa de enfrentamentos e guerras na África. Mas nem no futuro, nem tão longe de nós, já existe um conflito em curso pela mesma razão. A Grande São Paulo e a região metropolitana de Campinas dependem da bacia hidrográfica dos Rios Piracicaba-Capivari-Jundiaí. Se continuar no ritmo de consumo atual, daqui a poucos anos uma das duas cidades terá de ceder.

São Paulo depende de um volume gigantesco de recursos hídricos para abastecer a população, indústrias e plantações do cinturão verde da capital, mas a Bacia do Alto Tietê tem água suficiente para suprir apenas metade dessa demanda. A outra metade, aproximadamente, precisa ser importada da Bacia do Piracicaba, do outro lado da Serra da Cantareira, que também abastece a região metropolitana de Campinas. Por enquanto, trata-se de um conflito mediado por um contrato de outorga da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp), que garante à metrópole paulistana o direito de retirar 31 mil litros de água por segundo da bacia vizinha, durante dez anos. O acordo vence em 2014. Até lá, São Paulo será obrigada, por contrato, a buscar fontes alternativas para se abastecer de água e reduzir sua dependência do Sistema Cantareira, que compõe o trecho leste da Bacia do Piracicaba. Caso contrário, não há garantia de que a outorga seja renovada. "Agora não é mais um problema da Sabesp, é um problema de Estado", resume o diretor metropolitano da companhia, Paulo Massato.

A captação da Bacia do Piracicaba foi iniciada em 1974, mas São Paulo só começou a pagar por isso em 2006, com a lei de cobrança pelo uso da água. Hoje a Sabesp paga R$ 11 milhões por ano pelos 31 mil litros que retira por segundo do Cantareira. O dinheiro reverte 100% para o comitê de gestão da Bacia do Piracicaba, o que ajuda na preservação dos rios, mas não repõe a água que, em princípio, deveria estar disponível para os consumidores de Campinas e região. Em 2007, a empresa distribuiu 66 mil l/s, em média, para a região metropolitana de São Paulo (incluindo os 31 mil l/s do Sistema Cantareira). A capacidade máxima instalada de produção, segundo Massato, é de 68 mil l/s – uma margem de segurança mínima, de 2 mil litros, que deixa o abastecimento vulnerável a flutuações climáticas. Em 2003, ao fim de um longo período de estiagem, o Cantareira foi reduzido a 1% da capacidade. Por pouco não secou.

A demanda dos 19 milhões de habitantes da Grande São Paulo é de 86 mil l/s, incluindo todas as fontes de água: superficiais, subterrâneas ou retiradas diretamente dos rios para uso industrial e agrícola. Mas a oferta natural de águas superficiais da Bacia do Alto Tietê é de apenas 20 mil l/s, de acordo com o Plano Estadual de Recursos Hídricos. A Bacia do Piracicaba-Capivari-Jundiaí, que abriga a Grande Campinas, produz 43 mil l/s, para atender uma demanda de 40,8 mil l/s. Seria suficiente, se São Paulo não estivesse sugando outros 31 mil l/s do outro lado da serra. "Não há dúvida de que existe um conflito pelo uso da água", diz o engenheiro Rui Brasil Assis, especialista da Secretaria de Saneamento e Energia do Estado. "Não temos garantia de disponibilidade de água para o futuro."

Para evitar a disputa com Campinas, é quase inevitável que São Paulo precisará comprar briga com outras prefeituras. Pelo menos duas grandes obras já estão previstas. A primeira é a duplicação da capacidade da Estação de Tratamento de Água Taiaçupeba, em Suzano, de 5 mil para 10 mil l/s. A segunda, mais complicada, é a transposição de 4,7 mil l/s do Rio Juquiá, da Bacia de Ribeira do Iguape, no litoral sul. A região tem a maior abundância hídrica do Estado, com uma produção natural de 162 mil l/s, para atender uma demanda interna de 3 mil l/s. Se as duas obras forem concluídas como previsto, até 2014, isso significará um incremento de 9,7 mil l/s na oferta de água para a Grande São Paulo – menos de um terço do que é tirado do Sistema Cantareira. Outras opções seriam desviar água do braço do Rio Pequeno, na Represa Billings, hoje reservado para geração de energia na Usina Henry Borden, ou captar água de rios da Serra do Mar, o que teria impactos negativos sobre a mata atlântica. "Temos opções, mas são todas problemáticas", reconhece Rui Assis. "Precisamos avaliar o que é melhor para o interesse público."

A Grande São Paulo é a região com a menor disponibilidade de água per capita do País, segundo Massato. Cabeça por cabeça, tem menos água do que o sertão nordestino. A Sabesp calcula que a disponibilidade de água na metrópole é de 165 mil litros anuais por pessoa (incluindo toda a água da bacia, mais a trazida do Cantareira). Nas regiões mais áridas do Nordeste, esse índice gira em torno de 400 mil litros. Já o mínimo considerado sustentável pela Organização das Nações Unidas é 1,5 milhão de litros ao ano por habitante. "O sertão tem pouca água, mas também tem pouca gente", explica Massato. "Para São Paulo ser sustentável, deveria ter 2 milhões de pessoas, e não 20 milhões." O risco de escassez se agrava porque, pelos cálculos da ONU, a região metropolitana deverá ganhar 2,5 milhões de habitantes até 2025. Se o consumo doméstico por pessoa for mantido na média atual de 150 litros/dia, haverá uma demanda adicional de 375 milhões de litros/dia. Mas não bastará aumentar a oferta. É preciso reduzir o consumo e cortar o desperdício.

Na Grande São Paulo, 18% da água captada é perdida por vazamentos na rede da Sabesp. Isso equivale a 1 bilhão de litros/dia que, descontadas as perdas, seriam suficientes para abastecer 3,7 milhões de pessoas. "É uma Guarapiranga por dia que estamos jogando fora", diz Marussia Whately, coordenadora da Campanha de Olho nos Mananciais do Instituto Socioambiental. Da água que chega ao consumidor, boa parte é desperdiçada na lavagem de calçadas, em descargas velhas e banhos longos. Pelos critérios da ONU, uma pessoa precisa de 110 litros por dia para sobreviver – beber, comer, lavar roupas, tomar banho. Em São Paulo, o consumo médio per capita é excessivo: 220 litros por dia (considerando todos os usos, não só o doméstico). Se os 10,8 milhões de paulistanos reduzissem sua cota diária ao nível recomendado pela ONU, poupariam mais 1,2 bilhão de litros/dia. A Sabesp tem um plano de R$ 1,5 bilhão para redução de perdas em dez anos, que envolve troca de tubulações e redução da pressão em pontos críticos da rede. "Todo mundo já morou em uma casa velha que tem vazamentos. Na cidade é a mesma coisa", compara Massato. O fato é que a metrópole paulistana gasta muito mais água do que a natureza ao redor é capaz de oferecer. As torneiras só não secam graças às represas, que guardam as chuvas de verão para abastecimento durante o inverno, e à água de outras bacias.

Além da superexploração, a escassez tem uma origem natural. A Grande São Paulo concentra quase 50% da população do Estado, mas tem 4% da água disponível. Isso porque é uma área de nascentes, onde o volume dos rios é menor. "Temos pouca água disponível, consumimos praticamente tudo que temos e ainda produzimos uma quantidade enorme de poluentes", diz o especialista Eduardo Mazzolenis, do Departamento de Tecnologia de Águas Superficiais e Efluentes Líquidos da Cetesb. No fim, não sobra água para diluir a poluição que é despejada nos rios. Dos 34 municípios da Bacia do Alto Tietê, 14 jogam 100% do esgoto diretamente nos rios – inclusive Guarulhos, com 1,2 milhão de habitantes. No total, só 42% dos efluentes produzidos na região metropolitana recebem algum tratamento. Toda essa poluição drena para um único lugar: o Tietê. Apesar das várias operações de despoluição por que passou nos últimos anos, o nível de oxigênio no trecho paulistano do rio nunca saiu do zero, para onde despencou nos anos 1960. "Nós causamos tudo isso", lamenta a coordenadora da Rede das Águas da SOS Mata Atlântica, Malu Ribeiro. "O Tietê é o espelho de tudo que foi feito de errado nos espaços urbanos da bacia desde o Descobrimento. Se o rio está morto e fedido, é porque nós o tratamos assim."

Flagrante no Jaguari

Em junho, a reportagem do Estado flagrou uma intensa atividade mineradora na várzea do Rio Jaguari, no município de Bragança Paulista, a 80 quilômetros da capital. No Bairro Menin, zona rural, máquinas e tratores trabalhavam na abertura de uma imensa cava, removendo o solo e a vegetação para atingir as camadas de areia. Uma draga sugava água do rio para lavar a areia retirada e o Jaguari ainda recebia de volta a água suja, poluída por matéria orgânica e restos do óleo das máquinas. Os operários não sabiam dizer se aquela extração estava autorizada. O comandante do 2o Pelotão da Polícia Ambiental de Atibaia, tenente Arthur Veloso Júnior, disse que não havia autorização para a atividade. Segundo ele, desde 2007 a polícia autua portos clandestinos: "A gente faz o flagrante, vira as costas, eles abrem de novo."

As nascentes do Jaguari ficam em Minas Gerais e, em território paulista, o rio é represado para formar o Sistema Cantareira, que abastece a capital paulista. Da junção com o Rio Atibaia, em Americana, nasce o Piracicaba, que deságua no Tietê já em Barra Bonita. "Pela sua importância, o Jaguari deveria estar protegido numa redoma", alerta a ambientalista Malu Ribeiro, da Fundação SOS Mata Atlântica. Isso porque o rio é estratégico para abastecer as regiões metropolitanas de São Paulo e Campinas.

Malu afirma que, apesar de incompatível com a preservação, muitas vezes a mineração é autorizada por órgãos ambientais por falta de legislação mais rigorosa.

Em Bragança, a ação das mineradoras gerou dezenas de processos. Portos foram lacrados, mas os donos geralmente recorrem à Justiça. A Cetesb informou que só uma empresa tem aval para extrair areia na região. A licença foi dada em junho de 2007, para mineração em circuito fechado – sem devolução da água para o rio. A retirada de areia das várzeas e margens, com uso da água do rio, é letal para o Jaguari. "Interfere na vazão, acaba com a mata ciliar, carreia poluentes e causa assoreamento", diz Malu.

O problema, diz a ambientalista, é que o Jaguari percorre locais sem status de área de proteção ambiental. Por se tratar de um rio interestadual, fica sujeito a leis federais. O rio recebe também esgoto dos municípios que atravessa e sofre o impacto causado por olarias.

Os barreiros abertos para retirar argila não foram recompostos. "Quem trabalhava direito também foi prejudicado", diz Antonio dos Santos, de 63 anos. Desempregado desde a interdição de sua olaria, ele ganha a vida como vigilante e admite que havia abuso. "Muita gente desmatou para retirar o barro e não replantou nada." (José Maria Tomazela)


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