Diesel: em entrevista, procuradora tenta justificar acordo

 

Acerto para adiar oferta do diesel mais limpo ignora compensações ao serviço público de saúde

Em coletiva de imprensa realizada na última sexta-feira (31/10), a procuradora da República Ana Cristina Bandeira Lins classificou como “histórico” e “um avanço” o acordo que adia a comercialização do diesel mais limpo no Brasil. O fim das negociações foi anunciado na quinta-feira e é resultado de um consenso entre Ministério Público Federal, governo do Estado de São Paulo, Ibama, Cetesb, Agência Nacional do Petróleo, Petrobras, Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) e 17 fabricantes de veículos e motores. A iniciativa tem o apoio dos ministérios do Meio Ambiente e das Minas e Energia.

leia a íntegra do acordo

A participação da procuradora no caso teve início em janeiro deste ano, quando recebeu uma ação civil pública movida pelo Estado de São Paulo que exigia o cumprimento da resolução 315/2002 do Conama, que prevê a distribuição em todo o território brasileiro do diesel com, no máximo, 50 partículas por milhão de enxofre (ppmS) a partir de janeiro de 2009. De lá para cá, uma série de medidas foram tomadas, motivadas principalmente pela participação de organizações da sociedade civil, para que a lei fosse cumprida.

Agora, o Ministério Público Federal, por meio da procuradora Ana Cristina Bandeira Lins, é o porta-voz do acordo que põe fim à luta de milhares de cidadãos e dezenas de organizações que vinham se mobilizando para evitar que a pressão das montadoras e da Petrobras derrubasse uma resolução firmada há mais de seis anos.

“Informações técnicas me mostraram que o problema é muito mais complexo do que eu imaginava. A resolução 315/2002 foi feita sem nenhuma base científica, sem nenhum tipo de pesquisa sobre a realidade brasileira. Temos que considerar a malha rodoviária, as especificidades do nosso combustível. E isso vai começar a ser feito agora”, justificou a procuradora.

Segundo ela, durante as negociações foi observado que o cumprimento da ordem judicial era extremamente difícil, devido a uma série de dificuldades “técnicas e logísticas”. E avaliou como extremamente positiva a redução de 2.000 ppmS para 1.800 ppmS do diesel que hoje é vendido fora das regiões metropolitanas. “Mais de 75% do diesel consumido hoje no País tem 2.000 ppmS. Daí o impacto que essa mudança vai provocar”, explicou. Vale lembrar que, segundo recente publicação do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), o Brasil mantém um diesel de padrão igual ao de países como a Argélia, Namíbia, Botsuana e Líbia – considerados os piores do mundo.

Durante as quase três horas de entrevista coletiva, Ana Cristina Bandeira Lins utilizou argumentos técnicos e jurídicos para tentar comprovar que, hoje, “não há a menor condição” para que a Petrobrás forneça exclusivamente o diesel com 50 ppmS e as montadoras adaptem seus motores a partir de janeiro de 2009: “É claro que todos nós gostaríamos de ter diesel com zero de enxofre no Brasil inteiro, mas temos que pensar na nossa realidade. Seria um custo enorme para o País, que ninguém gostaria de pagar”.

O acordo, de mais de 30 páginas, representa um retrocesso incalculável para a saúde pública e o meio ambiente. Entre outras coisas, prevê somente para 2014 a distribuição exclusiva do diesel com 500 ppmS – padrão em vigor hoje nas grandes cidades e que provoca a morte de 3 mil pessoas somente na cidade de São Paulo. Mesmo assim, a procuradora comemora o fato de, a partir de janeiro, a Petrobras estar obrigada a importar o diesel 50 ppmS para os ônibus urbanos de São Paulo e Rio de Janeiro. E insiste que a utilização do diesel mais limpo nos motores em circulação tem “poucos benefícios”: “Não se chegou a um acordo sobre o percentual de melhora do diesel 50 ppmS nos veículos antigos. Segundo os técnicos, fica em torno de 10%”. Um documento oficial do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior afirma que os ganhos chegam a 40%. “Isso não é verdade”, rebateu.

O principal argumento do Ministério Público Federal para comemorar o fechamento do acordo é o fato de ele estabelecer multas e punições para os que descumprirem os próximos passos acordados e por “exigir investimentos significativos” das empresas e governos.

Fábio Feldman, do Fórum Paulista de Mudanças Climáticas, critica: “A Petrobras deverá pagar pífios R$ 1 milhão para fiscalização de emissão de fumaça preta no Estado de São Paulo, de acordo com o item 35 do acordo. Os fabricantes de veículos – 15, no total – deverão pagar R$ 12,7 milhões de reais (construção de laboratório, fiscalização móvel de emissão na capital paulista, e custeio de estudo sobre impactos causados pela emissão de poluentes). Dividindo-se o total para cada um dos fabricantes temos a quantia aproximada de R$ 846.666. O que deve representar o valor de dois ou três caminhões…”

Prejuízos à saúde foram ignorados

Os inúmeros prejuízos à saúde pública causados pela alta concentração do enxofre no diesel não foram considerados no acordo judicial. Em nenhuma das mais de 50 obrigações definidas às empresas e aos governos envolvidos há compensações financeiras ao setor público de saúde. Mesmo sendo consenso que milhares de pessoas morrem e outros milhões ficam doentes, todos os anos, por causa da poluição veicular.

Questionada sobre a possibilidade de o acordo prever investimentos na saúde, Ana Cristina Bandeira Lins admitiu que o ministro da Saúde, José Gomes Temporão, solicitou a destinação de R$ 14 milhões para o setor público. Porém, segundo ela, “não foi o caso”. “As empresas não concordaram em investir no tratamento das doenças, já que isso é uma obrigação do governo”, explicou.

Por fim, a procuradora informou que o inquérito civil público que apura os responsáveis pelo atraso que resultou no descumprimento da resolução 315/2002 do Conama ainda está em andamento. O prazo para conclusão é dezembro de 2010.

Veja cartas enviadas pelo Movimento Nossa São Paulo ao Ministro Carlos Minc e à procuradora Ana Cristina Bandeira Lins

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