“Fragilidade e exceção” – portal Terra

 

Marina Silva
De Brasília (DF)

Há vinte e dois anos existe no Brasil o Programa de Controle do Ar por Veículos Automotores, o Proconve, sigla um tanto desconhecida mas que representa uma das maiores vitórias em termos de política pública no País. O Proconve atravessou vários governos cumprindo rigorosamente metas de controle de poluição e gerando benefícios extraordinários para a saúde de milhões de pessoas que vivem nas cidades.

Foi criado em 1986 pelo Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente), com o objetivo de reduzir gradualmente a emissão de poluentes provocada por veículos leves e pesados, adaptando padrões de qualidade dos países desenvolvidos à realidade brasileira. Nas primeiras fases os veículos leves tiveram prioridade, dado seu maior número no meio urbano. Foram eliminados os modelos mais poluentes e introduzidas novidades como a injeção eletrônica, os catalisadores e a mistura do etanol na gasolina, numa proporção inédita no mundo.

Em vinte anos, o programa conseguiu reduzir a emissão de poluentes em mais de 90% nos automóveis. Nos últimos anos, chegou-se à fase da prioridade aos veículos pesados. Segundo determinação do Conama, a partir de janeiro de 2009 esses veículos deveriam estar adaptados a um padrão mais rigoroso de emissão de poluentes, aproximando-se do que é exigido na Europa.

Para isso, a Agência Nacional de Petróleo (ANP) deveria ter apresentado, em janeiro de 2006, as especificações necessárias – o que só foi acontecer em novembro de 2007. O não cumprimento do prazo, por parte da ANP, provocou uma quebra na ação do Proconve, o que nunca tinha acontecido em 22 anos. A Petrobras, por sua vez, não viabilizou os investimentos indispensáveis e as montadoras não realizaram os testes dos motores.

O ministério do Meio Ambiente, em várias administrações, e os órgãos estaduais de meio ambiente sempre fizeram todo o esforço para o sucesso do programa. Não foi suficiente. A responsabilidade não foi assumida pelos demais órgãos do Governo. A sociedade vinha se articulando para cobrar do Poder Público providências que não representassem a consolidação da política do leite derramado. No início deste ano, após reiteradas manifestações do MMA e do Ibama, cobrando as providências necessárias para o cumprimento da Lei, participei de evento público realizado em São Paulo por diversas entidades. Elas haviam ingressado com ação na Justiça contra as instituições e gestores responsáveis pelo desleixo e pelo desrespeito à legislação que poderia resultar em prejuízos irreparáveis.

Recentemente foi assinado um Acordo que reflete as negociações feitas entre todos os interessados para evitar maiores danos às metas do programa. Mas o documento não atende às expectativas da sociedade e gerou frustração e uma grande preocupação com o futuro do Proconve. Foi definido um cronograma de introdução do diesel menos poluente, sendo que apenas as frotas de ônibus das cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro poderão usufruir já em janeiro dos benefícios previstos na Resolução do Conama para todas as capitais e regiões metropolitanas. As demais regiões serão beneficiadas ao longo dos próximos três anos. Nesse período, será melhorado também o diesel distribuído no interior e a partir de 2012 entrará em vigor nova fase do Proconve.

A insatisfação com o Acordo vem da constatação de que as exigências estabelecidas estão aquém do prejuízo provocado. Há que se refletir sobre os limites que precisamos estabelecer quando buscamos resolver problemas ambientais pela lógica das compensações, que não podem ser vistas como panacéia para o desvio da conduta correta e desejável.

É preciso avaliar a razoabilidade de compensar a maior emissão de poluentes nas regiões metropolitanas, com a redução em regiões distantes dos grandes centros urbanos, onde a dispersão se dá em melhores condições. Seria como uma situação na qual o gás está inundando uma sala e é feito um plano de contingência para dispersá-lo ao longo de 24 horas, sem bloquear o acesso à sala. Nesse plano, apenas 10% do gás é dispersado nas primeiras doze horas e todo o restante na segunda metade do tempo. No final, matematicamente, tudo correu segundo os cálculos, mas quem estava na sala nas primeiras doze horas sofreu as conseqüências de forma diferente de quem chegou depois.

Creio que o ponto a que chegamos caracteriza a quebra de confiança e do compromisso ético e institucional que fazia do Proconve uma experiência emblemática. Há que se reconhecer o esforço de vários interlocutores para levar a negociação a bom termo, mas sem dúvida ficou uma sensação de fragilidade e exceção que pode vir a comprometer todo o futuro do programa, caso as responsabilidades não sejam devidamente apuradas.

Marina Silva é professora secundária de História, senadora pelo PT do Acre e ex-ministra do Meio Ambiente.

Fale com Marina Silva: marina.silva08@terra.com.br

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