Por Bruna Escaleira e Camila Souza Ramos*
Por que a sociedade civil brasileira não vai ao Judiciário? Essa questão foi debatida pelo sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, o advogado Sérgio Leitão, do Greenpeace Brasil, e Flávia Carlet, da Rede de Advogados e Advogadas Populares, durante o Fórum Social Mundial em Belém, nesta quinta-feira (29/1). Por trás dessa discussão está a falta de debate sobre o judiciário na comunidade, já que o tema tem sido pouco contemplado até mesmo em eventos como o FSM.
“Poucos sabem o que o STF faz”, aponta Sérgio, que também lembrou da falta de acesso e controle social sobre a indicação dos ministros e as atividades dos juízes. Para ele, os ministros da Justiça tentam compensar o fato de não terem sido eleitos pelo povo criando uma legitimidade fictícia ao exporem-se à grande imprensa. No entanto, não há, igualmente, uma mobilização popular para democratizar e aproximar o poder Judiciário da sociedade. “Essa concepção vem tanto da sociedade, como do governo, que acredita que o executivo vai resolver tudo”, sublinha Sérgio.
Em concordância, Boaventura colocou que a raiz da falta de diálogo entre Justiça e povo é o fato deste ser objeto dos discursos e lutas sobre os direitos humanos, mas nunca seu sujeito, o que ocorre porque boa parte da sociedade civil não tem esses direitos assegurados. “Uma vez perguntaram a Gandhi o que ele achava da democracia ocidental, e ele respondeu que seria uma boa idéia”, provocou o sociólogo. “Acredito que hoje, se perguntássemos o que acham da justiciabilidade dos direitos humanos, responderiam que seria uma boa ideia”, brincou.
Ele ressaltou que o próprio conceito de “sociedade civil” é abstrato, pois acaba excluindo aqueles que não têm seus direitos garantidos, e que passam a ser considerados como não civilizados. Por isso, como defende Boaventura, o direito não é apenas um assunto técnico, mas também político. “Dizer que o direito não é política é a maneira da classe dominante fazer política e manipular, por isso, temos que acabar com o fetichismo em relação aos direitos humanos”, assevera.
Frente a esse impasse, o sociólogo português colabora na construção de um observatório da Justiça brasileira, com o objetivo de modificar o senso comum jurídico no país, o qual considera muito conservador. No entanto, para isso, argumenta que é preciso fazer uma mobilização jurídica articulada com uma mobilização política.
Nesse sentido, considera importante que os advogados entendam os processos individuais dentro de um contexto coletivo. Entre as intervenções da platéia, foi citado o caso das cerca de 10 mil mulheres presas por praticar aborto no Mato Grosso, um exemplo de processos individuais que precisam ser vistos de uma perspectiva que os relacione.
Outro caso é o da criminalização das táticas de luta dos movimentos sociais, que, segundo Boaventura, foi intensificado após a queda das Torres Gêmeas em 11 de setembro. Um exemplo disso são os processos vencidos, recentemente, pelo Movimento Sem Terra, que foram analisados pelo sociólogo e um grupo de pesquisadores brasileiros em um documento inédito (leia mais no final da matéria*).
Reinventar o direito
Boaventura acredita que a prática atual do direito não é eficaz para incluir a todos e garantir a justiça. “É preciso conceber o direito como emancipatório, então vocês que estudam o direito devem desaprender o que aprenderam nas faculdades”, afirma. “Temos que reinventar o direito para saber as nossas lutas”, propõe.
Como primeiro passo para essa tarefa, o sociólogo defende a necessidade de trabalho conjunto entre os advogados populares e os movimentos sociais. “Trabalhar para uma causa não é perder sua autonomia, é o mesmo que trabalhar para uma empresa. Não se angustiem sobre a escolha da luta, escolham a que está mais perto”, aconselha.
É importante que as organizações civis busquem alternativas jurídicas para suas lutas, mas é preciso que os advogados populares respeitem as decisões desses sujeitos políticos. “Por vezes o movimento tem lógicas que o advogado desconhece”, recorda Boaventura, referindo-se a instrumentos de luta dos movimentos que nem sempre são aconselháveis do ponto de vista jurídico, como manifestações ou ocupações.
O segundo passo para “reinventar o direito” deve começar em sua base, o ensino. Além de modificações no curso superior, que atualmente não contempla o suficiente a pauta dos direitos humanos, é necessário aproximar a academia da sociedade. Ele argumenta que sem uma educação sobre o direito, não se cria uma consciência coletiva quando se vê seus direitos violados.
Ilegal, porém legítimo.
Entre as estratégias utilizadas pelas organizações civis para garantir seus direitos, Boaventura não descarta as consideradas ilegais. “Todas as lutas legais podem ter momentos ilegais”, defende. Da mesma forma como coloca em seu livro “Fórum Social Mundial: Manual de Uso”, ele afirma: “nossa carta de princípios diz que nossas lutas têm que ser pacíficas, mas não necessariamente legalizadas. Nossos advogados terão que conseguir defender essas lutas ilegais com o maior índice possível de segurança jurídica”.
A tarefa não parece fácil, mas por meio de estratégias criativas, pode ser possível. “Não pensem que o judiciário é monolítico, pois ele é feito de pessoas e há muita gente hoje que é progressista dentro do judiciário, mas que precisa de apoio dos movimentos sociais para ter mais segurança de atuar”.
Também precisam de apoio as reivindicações em pauta no momento, como a demarcação da reserva Raposa Serra do Sol, que foi amplamente discutida pela imprensa e alvo de diversas manifestações populares.
Lição internacional
Como exemplo de alternativas jurídicas criativas para resolução de conflitos nacionais e inclusão no acesso aos direitos humanos, o sociólogo cita a recém referendada Constituição da Bolívia, que, com o apoio de cerca de 80% da população, limitou a propriedade privada da terra a 5 mil hectares.
Também lembrou da Constituição do Equador, que assegura o direito da natureza ser preservada, já que para os indígenas e quilombolas, ela não é um recurso natural, mas parte deles e de sua cultura. “E para defender esses direitos, é preciso estudá-los – estudar as cosmovisões das comunidades ribeirinhas, por exemplo”. Ambas as constituições são exemplos de respeito à diversidade, já que usam artigos nas línguas quechua e aimará.
Aproximação
Dentre as diversas interações entre o auditório e a mesa de debate, merece destaque o questionamento sobre a distância que ainda há entre Judiciário e sociedade e a defesa de uma proximidade entre esses dois agentes complementares. Afinal, como destacou Boaventura, o direito é daqueles que podem pagar.
*Bruna Escaleira, Camila Souza Ramos e Tatiane Ribeiro são alunas de jornalismo da Escola de Comunicação e Artes (ECA) da USP, que estão fazendo reportagens sobre o Fórum em colaboração para alguns sites, como o portal do Movimento Nossa São Paulo. A cobertura completa feita pelas estudantes pode ser acessada no blog http://tresnoforum.wordpress.com/