Falta de saneamento faz distrito de Marsilac lançar esgoto diretamente no Capivari, ainda livre de poluição
Bruno Versolato
Uma vez por semana, Nino Santana, de 38 anos, inicia um ritual que leva toda a manhã. O primeiro passo é ligar à caixa d’água de casa uma mangueira que segue morro abaixo até uma mina localizada num barranco coberto por vegetação. "Com estes dias quentes, tive que fazer essa romaria umas duas vezes." Santana mora no distrito de Marsilac, extremo sul de São Paulo. Sua casa seria atendida por um poço profundo perfurado pela Sabesp em 2004, inativo até hoje. "Várias famílias usam a água da mina. Não sei até quando ela aguenta", diz Santana, vendedor de loja afastado do emprego após um acidente de trabalho.
Os 15 mil moradores do distrito de Marsilac têm o pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da capital e nível de mortalidade infantil superior à média do Nordeste. Como a maioria da população utiliza valas negras para despejar o esgoto, há risco de contaminação por doenças graves, como hepatite, cólera e tifo. A falta de saneamento coloca em risco vidas e também o único rio livre de poluição que corta São Paulo – o Capivari.
"Em termos ambientais a região é de extrema importância. Na verdade, o Capivari é o único rio sem poluição que corta Marsilac, mas a região abriga vários cursos d’água intactos que nascem na Serra do Mar e abastecem o Sistema Guarapiranga", diz Élio Neves, chefe de gabinete da Secretaria Municipal do Verde.
O Guarapiranga, que fornece cerca de 30% da água consumida em São Paulo, não é o único destino do esgoto produzido em Marsilac. Os dejetos do barraco da catadora de papel Janete Aparecida Elias, de 45 anos e seis filhos, por exemplo, são despejados todos no Ribeirão Claro, riozinho que vai encontrar o Capivari quase na chegada à Represa Billings, que passa pouco atrás da casa.
Recentemente, Janete aumentou para 5 metros a profundidade do poço de onde retira a água que usa no dia a dia. Nos últimos meses, a catadora andou às turras com o vizinho, que pretende construir uma vala negra em um terreno acima do poço dela. Se o vizinho insistir no projeto, os dejetos vão contaminar a água que a catadora e os seis filhos usam para beber, cozinhar e tomar banho.
DESEMPENHO AMBIENTAL
O drama da população de Marsilac é exemplar para se entender o que acontece com o saneamento básico no Brasil. O Índice de Desempenho Ambiental (EPI, na sigla em inglês), levantamento feito pelas Universidades de Yale e Columbia que mede a performance ambiental de 132 países, listou o Brasil em 34º no ranking, com 82,7 pontos de média. Não muito atrás de países como Dinamarca (84) e Espanha (83,1).
Mas no quesito Adequação Sanitária o País fez feio. No levantamento de 2008 teve nota 70,8. Na comparação das Américas, ficou atrás de países como Guatemala, Paraguai, Jamaica e República Dominicana. "Mesmo São Paulo, que tem IDH de país europeu, tem seu lado africano", diz Raul Pinho, presidente executivo da ONG Trata Brasil.
Hoje, 97% dos municípios brasileiros dispõem de água tratada em 70% das residências ou mais, só que apenas um terço do esgoto é recolhido, diz Paulo Libânio, coordenador do Programa de Despoluição das Bacias Hidrográficas (Prodes) da Agência Nacional das Águas (ANA). "O mais grave é que apenas 30% do esgoto coletado é tratado e esse é o maior fator de poluição de águas no Brasil", afirma Marcelo Néri, professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Nesse cenário, não é apenas o morador pobre, da zona rural ou de comunidades irregulares que sai prejudicado. O número de pessoas morando em cidades no Brasil corresponde a 82,7% da população. Desse total, 56% é atendido pela rede coletora de esgoto. O resto é obrigado a despejar esgoto in natura em córregos, rios ou praias.
"É o caso dos condomínios da Barra da Tijuca ou do Recreio dos Bandeirantes, no Rio", diz Pinho. Os imóveis desses bairros, que ostentam construções de alto padrão, não dispõem de rede coletora. O esgoto produzido por eles é jogado na praia ou em fossas sépticas, cujo transbordamento por falta de manutenção pode trazer danos sérios ao ambiente.
Libânio, doutor em Saneamento Básico pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), explica que, nos anos 1970, os investimentos no setor foram concentrados em distribuição de água. "Só a partir de 2000 é que se começou a investir em coleta e tratamento de esgoto de forma maciça."
"Há duas décadas a política era afastar o esgoto. Jogava no mar, rio abaixo. Hoje, com as cidades crescendo e uma se juntando à outra, a população passa a ver a sujeira", diz Pinho. Um exemplo dessa mudança de enfoque ocorreu nas últimas eleições municipais, em que candidatos debateram a questão do tratamento de esgoto. "A visão de que saneamento não traz dividendos políticos já não existe", diz Libânio.
Mas, apesar do cenário mais favorável ao investimento em saneamento, modernizar o setor no País exigirá tempo e dinheiro. "Se começarmos agora, vamos demorar 20 anos e R$ 200 bilhões para levar água e esgoto tratado a 100% dos domicílios do País", diz Libânio. Em coleta e tratamento de esgoto, números internacionais mostram que se gasta cerca de R$ 600 por pessoa para montar a infraestrutura. Para tratar e distribuir água potável, o número gira em torno de R$ 200 per capita.
RETORNO
O gasto de R$ 200 bilhões pode parecer alto, mas o custo-benefício é atraente. Citando levantamentos do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), Pinho afirma que, para cada R$ 1 investido em saneamento, o poder público poupa R$ 8 em gastos na saúde. "Em alguns casos, a relação pode ser de R$ 1 para R$ 30. É um investimento que se paga facilmente."
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