“Nossa reciclagem é um lixo, mas há soluções” – Veja São Paulo

 

A coleta seletiva de São Paulo está estagnada: representa apenas 1% das 15 000 toneladas de resíduos que a prefeitura recolhe diariamente. Especialistas indicam como mudar esse cenário

 
Por Daniel Nunes Gonçalves

Reduzir, reutilizar e reciclar. É raro quem nunca tenha ouvido a recomendação para usar o princípio dos "três erres" na hora de consumir e dar um destino ao lixo que produz. A popularização da palavra sustentabilidade fez crescer a consciência ambiental e tem estimulado os paulistanos a fazer sua parte. Donas de casa vão aos mercados carregando sacolas de pano para não precisar gastar sacos plásticos, profissionais pensam duas vezes antes de imprimir seus e-mails, e nas escolas as crianças aprendem a separar papéis, latas e plásticos naqueles simpáticos cestinhos coloridos. A boa vontade da população, porém, não é suficiente para resolver um dos maiores problemas de metrópoles como São Paulo: o destino de seus resíduos. Apenas 1% das 15 000 toneladas de lixo produzidas diariamente na cidade passa pela coleta seletiva da prefeitura. Se levássemos em conta somente os detritos domiciliares que podem ser reaproveitados, esse número subiria para 7%. Muito pouco.

Os setenta caminhões de coleta seletiva da administração municipal atendem cerca de 20% dos moradores da capital. Muitos paulistanos tomam o cuidado de separar metais, vidros, plásticos e papéis naqueles cestos coloridos. Perda de tempo, já que esses materiais são jogados no mesmo caminhão e divididos só depois, em centros de triagem. Portanto, basta separar o lixo em dois sacos: um para rejeitos comuns, que vão parar em algum dos três aterros sanitários usados pelo município; e outro para recicláveis. Vale, claro, dar ao menos uma enxaguada para que restos de alimento não atraiam insetos.

Os caminhões de lixo reciclável da prefeitura, que carregam 140 toneladas diárias, passam em dias diferentes dos veículos de coleta comum. Duas concessionárias, Loga e Ecourbis, são responsáveis por 60% do serviço. O restante fica por conta de caminhões-gaiola de quinze cooperativas de catadores cadastradas pela administração municipal. Com 964 associados, elas são responsáveis também pela triagem de tudo o que é recolhido. Os 8,8 milhões de paulistanos que moram fora da rota desses veículos têm, caso queiram reciclar, de contatar cooperativas independentes ou se dar ao trabalho de levar, no porta-malas do carro, seus dejetos a pontos de entrega voluntária espalhados por empresas privadas, como os sessenta supermercados da rede Pão de Açúcar e os treze da Wal-Mart.

Quando comparado com os sistemas de coleta seletiva de capitais como Curitiba e Porto Alegre, que existem há duas décadas e atendem 100% da população, o atual programa paulistano, vigente desde 2003, é vergonhoso. "Acho lastimável que a metrópole que mais produz lixo na América do Sul não tenha políticas públicas de administração de resíduos sólidos compatíveis com o século XXI", afirma Elisabeth Grimberg, coordenadora de ambiente urbano do Instituto Pólis, ONG que atua na área. "É inadmissível que apenas 1,5% dos 760 milhões de reais do orçamento anual da Secretaria de Serviços para o lixo seja destinado à coleta seletiva." Segundo Elisabeth, 30% de tudo o que é rejeitado poderia ser reciclado, o que representaria uma economia anual de mais de 9 milhões de reais. "Sabemos que os números atuais estão aquém do ideal, mas estamos trabalhando para melhorá-los", diz o secretário de Transportes e de Serviços, Alexandre de Moraes. Ele lembra que o orçamento previsto para a coleta seletiva neste ano, 11,8 milhões de reais, é o dobro do destinado em 2008.

O que fazer com o lixo não é uma questão que aflige apenas os paulistanos. Trata-se de uma preocupação mundial. Para se adequarem a leis ambientais cada vez mais rígidas, várias cidades ricas do mundo mandam seus rejeitos para fora. Mais de 80% do lixo de São Paulo já tem como destino os municípios de Caieiras e Guarulhos. Com o objetivo de evitar a proliferação de lixões antiecológicos, os aterros sanitários contam com tratamento para o refugo tóxico. Mas a capacidade desses espaços é limitada, e só uma reciclagem eficiente diminuiria a quantidade de detritos a ser enviados a eles. Para piorar, a recente crise econômica afetou as cooperativas de coleta e triagem. "O preço do papelão, das garrafas PET e das caixas longa-vida que vendemos para os recicladores caiu pela metade", diz a ex-vendedora ambulante Olinda da Silva, coordenada da Coopere, no centro. O quilo de latas de alumínio caiu de 3,80 para 2 reais, enquanto o quilo de jornais e revistas passou de 20 para 10 centavos. Como os catadores não têm salário fixo, muitos abandonaram o trabalho para viver de bicos. O número de cooperados cadastrados na prefeitura diminuiu 15% de julho de 2008 para cá. "Há um ano, eu ganhava 1 000 reais por mês. Agora, está difícil tirar 600 reais", queixa-se Olinda.

A queda no número de catadores teria refletido diretamente na qualidade da coleta. Muitas pessoas voltaram a jogar o que poderia ser reaproveitado no lixo comum. "Com isso, os aterros receberam 10% a mais de recicláveis", afirma Cícero Yagi, integrante do Movimento Nossa São Paulo. Para evitar que isso acontecesse, a Coopamare, de Pinheiros, ficou com seu galpão lotado de materiais. "Alguns cooperados desistiram de trabalhar e os recicladores passaram a comprar menos, mas não queremos parar de atender nossos quarenta clientes", conta a ex-doméstica Maria Dulcinéia Santos. Sem equipamentos nem contas pagas pela prefeitura, o grupo é uma das cooperativas independentes da cidade. Estima-se que existam aqui mais de 100 delas e 20 000 catadores. A prefeitura pretende incorporar, até o fim do ano, dez dessas cooperativas às suas centrais de triagem oficiais. "Vamos usar para isso uma verba federal de 6 milhões de reais", promete o secretário Alexandre de Moraes. Com mais estrutura, acredita ele, as cooperativas poderão trabalhar melhor e garantir para si parte do lucro que hoje fica nas mãos de intermediários.

Os sinais de recuperação econômica dos últimos dois meses apontam para dias melhores. "Embora o primeiro semestre tenha sido difícil, a indústria voltou a comprar e os estoques das cooperativas começam a diminuir", afirma André Vilhena, diretor executivo do Compromisso Empresarial para Reciclagem (Cempre). "Felizmente, o Brasil tem capacidade para reciclar tudo o que produz, algo que não ocorre em vários países europeus", diz. "Lá, apesar de haver uma grande coleta seletiva, a indústria recicladora não é desenvolvida." São Paulo sente ainda o impacto do atraso na implementação da Política Nacional de Resíduos Sólidos, um projeto parado em Brasília há dezoito anos e que deve criar regras e diretrizes para que os próprios fabricantes sejam responsáveis pelo destino de seus produtos. "Leis municipais, estaduais e federais dificultam às indústrias e à população a compreensão do destino a ser dado a seus resíduos tóxicos, a exemplo de celulares e lâmpadas fluorescentes", conta André Vilhena.

Em meio a tanta morosidade das políticas públicas, a sociedade civil faz sua parte. ONGs como o Cempre, o Pólis e o Instituto Gea atualizam sites com orientações sobre o que pode ser reciclado e como implantar a reciclagem em um condomínio, uma escola ou uma empresa. Além de receber 5 000 toneladas de recicláveis em 2008, o grupo Pão de Açúcar criou ainda os caixas verdes, para descarte de embalagens, em nove de suas lojas paulistanas. No primeiro semestre deste ano, nada menos que 83 000 caixas de creme dental e de sabonetes foram recolhidas logo depois de ser pagas. Os paulistanos mais engajados aderiram até a composteiras caseiras. "Transformo meus restos de comida em adubo para as plantas do jardim", diz Nina Orlow, especialista em sustentabilidade, que fez toda a família se acostumar às minhocas necessárias para a decomposição do seu lixo orgânico. "É um pouco estranho, mas vale a pena saber que estou dando um destino ecologicamente correto aos meus resíduos."

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Teste da coleta

Tentamos incluir uma rua na rota dos caminhões da prefeitura

Passar a fazer parte do roteiro dos caminhões de coleta seletiva da prefeitura não é nada simples. Depois de perceber, pelo site www.limpurb.sp.gov.br, que a concessionária Loga passava uma vez por semana em três ruas vizinhas do bairro de Pinheiros, uma repórter de VEJA SÃO PAULO ligou para o 156 e solicitou que seu condomínio também tivesse os detritos recolhidos. Na mesma semana, recebeu o retorno: os sacos deveriam ser deixados na rua  às terças-feiras, durante o dia. Por três semanas o lixo ficou ali em vão, sendo recolhido pelos caminhões da coleta comum. Depois de mais um telefonema de reclamação, a Loga prometeu que o buscaria na semana seguinte. Deu certo. Na última terça (28), porém, a empresa furou de novo. Mais uma vez os sacos com recicláveis foram parar no aterro sanitário. Ao receber nova queixa, a Loga garantiu que a coleta será normalizada nesta semana. É esperar para ver.

Capitais exemplares

Como funciona a reciclagem onde a coleta seletiva existe há duas décadas e já atinge 100% da população

Curitiba (PR)
Uma concessionária leva os recicláveis colhidos em toda a cidade para um só centro de triagem. Administrada por uma ONG, a central emprega 103 pessoas. Outros 5 000 catadores fazem coleta paralela e triagem em parques.

Porto Alegre (RS)
Duas vezes por semana, os caminhões da prefeitura percorrem toda a cidade, recolhem os resíduos e os levam para dezesseis unidades de triagem com gestão autônoma e subsídio de 2 500 reais mensais da prefeitura.

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