Rodrigo Bertolotto
Do UOL Notícias
Em São Paulo
Para entender o termo "sentido bairro", nada melhor que ir para Engenheiro Marsilac, distrito da extrema zona sul de São Paulo. Depois de 60 quilômetros e três ônibus "sentido bairro", chega-se ao limite que o sistema Bilhete Único possibilita.
Valendo o preço de uma passagem, o cartão foi estendido de duas para três horas no ano passado, medida que foi chamada de eleitoreira. Se o objetivo era eleitoral, ele não visava os eleitores de Marsilac, que estouram o prazo de qualquer jeito para chegar ao centro ou para voltar para casa.
A reportagem do UOL Notícias fez a rota mais longa dentro do município de São Paulo em 3h50min e estourou o prazo para chegar ao bairro mais distante da praça da Sé (de lá até a praia de Mongaguá, no litoral, são apenas 30 km em linha reta). Teve de usar duas passagens na ida. Na volta, conseguiu cumprir o tempo estipulado.
Foram três ônibus na ida para chegar a Marsilac, reunião de oito ruas e poucas dezenas de casas no meio de uma reserva da Mata Atlântica. O ponto final fica diante de uma casa de madeira, habitada só por cupins. Na volta, mais três ônibus.
A aventura começou na avenida Brigadeiro Luis Antonio, à espera de um veículo com o luminoso anunciando Terminal Santo Amaro. Poucos minutos parado no ponto fazem você virar um especialista em transporte público. "Sabe algum que passe no Ibirapuera?", pergunta uma garota. "O Imirim demora muito?", indaga uma senhora.
Já embarcado, a maioria dos passageiros gasta a uma hora e tanto a bordo com diversões eletrônicas.
Uns não largam o telefone. Toca um celular: "Oi, tô no ônibus". Dez minutos depois, a garota atende de novo: "Tô ainda no ônibus". Outros preferem a solidão do fone de ouvido. Até o cobrador, que parece fazer um favor quando decide dar ouvidos a algum usuário meio desorientado.
O isolamento acústico deve ser para se proteger dos artistas que fazem do corredor seu palco.
Nas proximidades de Santo Amaro, há desde repentistas rancorosos, que fazem troça de quem não dá uma caixinha (com rimas tipo "Essa menina é mal-encarada/ Será que é de fome ou é mal amada?"), até cantores sertanejos que assassinam clássicos caipiras para vender CDs.
O primeiro terminal é um verdadeiro shopping alternativo, que vende de relógios falsetas de marcas internacionais a pamonha. "Você é da prefeitura?", pergunta um ambulante temendo que o repórter seja um fiscal travestido.
Os nomes nas placas dos parabrisas atraem para destinos como Parque Bristol, Jardim Orion, Macedônia, Riviera ou Ilha do Bororé. Mas o destino seguinte da reportagem é Parelheiros.
O ônibus é mais cheio, e a carenagem embarrada prenuncia o que há pela frente. Agora, cada parada tem um puxadinho que serve como pátio de alimentação, com churrasquinho saindo em meio ao fumacê.
Uma estudante, sentada no piso para aguentar as quase duas horas de trajeto, se queixa: "Ô, vida. O que que eu fiz pra Deus?" Um rapaz está nervoso com a demora. "É minha responsa. Vou pegar o bagulho lá e sair rapidinho, né, não, mano? Tá mó tardão", comenta com o amigo.
Por toda a avenida Robert Kennedy, a tentação é grande para aderir ao transporte individual. Dezenas de lojas automotivas pontilham a calçada. Seminovos, calotas, baterias, alarmes, injeção, suspensão, auto-escola. Para atrair, um comércio faz qualquer negócio: "Vendo, compro, troco, financio, consigno, aceito o seu carro como entrada."
"É dureza todo dia pegar o busão lotado. Quando puder, compro um carro. Fico no trânsito, mas sentado, com espaço", desabafa o escriturário Jonas Ferreira, repetindo a lógica que levou a cidade a ter 6,5 milhões de veículos (o velho dilema: as pessoas compram carro porque o sistema coletivo é ruim ou o sistema é ruim porque as pessoas preferem os carros?).
O ônibus sacode ao passar pelas obras do futuro trecho sul do Rodoanel. Os nomes dos pontos aumentam a sensação de distância: "Parada Satélite Ariel" e "Parada Estrada do Paiol". Alguns desses pontos são decorados por tapetes de flores maria-sem-vergonha, que margeiam toda a estrada.
Uma garota faz graça ao chegar a Parelheiros, bairro que tem duas tribos guaranis. "Agora estou namorando o pajé e vou passear de carroça com ele. Chega de ônibus."
Do terminal Parelheiros é necessária mais uma caminhada pelo centro do bairro para chegar ao ponto onde passa o Terminal Varginha-Marsilac – antes passando pela Igreja do Milagre Urgente, que oferece água ungida e toalhinha da bênção.
A parada fica na frente de uma vendinha bem interiorana que oferece rapadura, flores de plástico e esmaltes. Depois de uns minutos, chega o ônibus. Quem entra reconhece quem está a bordo. "E aí, Zé Ruela?", dispara um. "Fala, fedido", responde o outro. O prazo de três horas do bilhete estourou, e o jeito é gastar novos R$ 2,30 de crédito no Bilhete Único.
Araucárias, pesqueiros, floresta, sítios, lago com patos, casas de colonos passam pela janela. A estrada corta a APA Capivari Monos, uma área de proteção ambiental. O asfalto tem vários trechos esburacados, rastros de bosta e muitas pessoas andando na pista. Afinal, não há acostamento ou calçada.
O motorista breca diante de um atalho e cumprimenta a senhora parada ali: "Como vai, comadre?" Ele ajuda outra usuária a baixar suas compras, em uma relação bem diferente da comum nas viagens da São Paulo que ficou para trás. Em outra parada, um grupo toca violão e canta, mas só para se divertir, não para pedir caixinha para os ouvintes.
O caminho bifurca e quem vira à direita segue para Cipó do Meio. O ônibus segue para a esquerda e aporta no ponto final às 15h20. O fundo sonoro é garantido por galos e grilos.
E os poucos habitantes, aglomerados no botequim na outra calçada, estão mais preocupados com o sujeito que puxa a câmera para tirar fotos: "Você é da polícia? É da TV Globo?"
A estadia é curta. Porque a volta, apesar de ser no contrafluxo, é tão longa quanto a ida, com escalas nos terminais Varginha e Grajaú, com direito a baldeação em lotação decorada ao gosto do motorista – ele mostra sua fé em Cristo e no Corinthians em adesivos nos vidros e painel.
A jornada termina às 18h, já escuro, dentro do prazo de uma passagem. Foi uma viagem de quase 120 km e três bilhetes únicos, sem sair do município de São Paulo.