Estudo mostra que índices atuais batem com os dos anos 70; em 100 anos, crimes saíram do privado para o público
Bruno Paes Manso
Nos primeiros anos do século 20, a São Paulo provinciana do café e dos imigrantes crescia em ritmo acelerado. A violência chegava às páginas dos jornais com ares de escândalo, motivada pelos assassinatos passionais, envolvendo honra, paixão e intrigas familiares. Foi o caso do crime do advogado Peixoto Gomide, antigo presidente interino do Estado, que, em 1906, por ciúmes, assassinou a própria filha, que iria se casar com um promotor de Justiça, e depois se suicidou.
Década após década, ao longo de um século, os assassinatos passaram por diferentes fases na capital. Como mostra o levantamento inédito feito pelo Estado nos arquivos da Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade), a partir dos dados do Anuário Demógrafo Sanitário e de tabelas manuscritas do Departamento de Estatística do Estado, com dados de homicídios desde 1909.
Nos últimos dez anos, pela primeira vez a capital passou por uma queda contínua de homicídios, chegando em 2008 a 1.560 casos, com índices de 14,2 assassinatos por 100 mil habitantes, mais próximos aos vividos nos anos 1970. Em 2009, contudo, uma elevação de 4% nos índices levou muitos a se perguntarem até que ponto essa paz é de fato duradoura.
"A história de São Paulo mostra que a paz que hoje alcançamos é sólida. O aumento do ano passado é insignificante. Os assassinatos não vão crescer de novo. Isso é o resultado de reformas na corporação que levaram à queda de homicídios em mais de 600 cidades do Estado. E os homicídios não vão subir principalmente porque os cidadãos não querem que isso aconteça", afirma o coronel Álvaro Camilo, comandante-geral da Polícia Militar.
O professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos Gabriel Feltran, contudo, acredita que a paz alcançada por São Paulo ainda é instável. "Nas favelas em que faço pesquisa, a queda dos homicídios nessa década deveu-se principalmente a uma regulação interna ao mundo do crime. Isso não é novidade nas periferias nem entre colegas que fazem pesquisa de campo. A regra na era PCC é "não matar" e a exceção é regulada por tribunais extralegais. Isso rompe a cadeia de vinganças privadas que amontoava corpos de jovens nas vielas há dez anos. Esse não me parece ser um cenário de paz, muito menos estável", diz.
PÚBLICO E PRIVADO
Durante os últimos cem anos, a história da violência em São Paulo pode ser dividida em dois grandes períodos: antes e depois da década de 1970. A primeira fase é marcada pelos crimes passionais, relacionados a questões privadas. Nesse período, raramente os índices de assassinatos ultrapassaram os 10 casos por 100 mil habitantes.
No ano de 1911, por exemplo, a cidade, de 390 mil habitantes, só registrou 21 homicídios, menor marca em cem anos. Esse total foi multiplicado por 120 em 1999, quando a São Paulo de 10,4 milhões, que enfrentara crises econômicas sucessivas, registrou 6.653 assassinatos.
No início do século, as ocorrências envolviam brigas de marido e mulher, adultério ou desavenças entre integrantes de grandes famílias de imigrantes. Entre os 221 processos de homicídios analisados pelo historiador Boris Fausto no livro Crime e Cotidiano, ocorridos durante os anos de 1880 e 1924 em São Paulo, em 70 casos (32%) a família aparecia como eixo central do crime. Os corpos das vítimas quase sempre estavam dentro de residências. "São casos que refletem uma época, quando questões como honra, virgindade e paixão tinham grande relevância. A situação muda com o tempo, quando os casos de assassinatos passam a acontecer nas ruas, revelando a gradativa falência do Estado", diz o historiador Boris Fausto.
Os reflexos dessas transformações começam a aparecer principalmente depois dos anos 1970. Nesse ano, a mancha urbana da cidade, com mais de 1,7 mil km², já era dez vezes maior do que a dos anos 1930. O crescimento ocorreu de forma desorganizada a partir da autoconstrução e dos loteamentos clandestinos em terrenos próximos das zonas industriais.
Berços dos movimentos sociais e sindicais, também são nesses lugares em que os homicídios passam a ocorrer como uma maneira de lidar com a crescente desordem. Quando migram das casas para as ruas, a epidemia e o ciclo de violência passam a crescer aceleradamente. Nos anos 1960, foram protagonizados pelos integrantes da Polícia Civil, que atuavam nos chamados esquadrões da morte. Nos anos 1980, entram em cena os integrantes da Polícia Militar, responsáveis pelo patrulhamento ostensivo, agindo, em alguns casos, em parcerias com os justiceiros. O tráfico chega a esses lugares nos anos 1990. É essa bola de neve que faz a cidade atingir o recorde de homicídios em 1999.
"Para manter ou diminuir os índices de assassinatos é fundamental manter o controle da circulação de armas nas ruas, que está diretamente relacionada ao nível de violência letal", diz o sociólogo Túlio Kahn, da Coordenadoria de Análise e Planejamento da Secretaria de Segurança Pública.
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