“A vila fantasma” – Folha de S.Paulo

 

Prefeitura diz que 10.191 famílias ocupavam áreas alagáveis da várzea do Tietê; 4.093 já saíram; município dá "bolsa-enchente" no valor de R$ 300 mensais

LAURA CAPRIGLIONE
DA REPORTAGEM LOCAL

Inácia Pereira Ramiro, 47, viu os vizinhos, um a um, saírem de suas casas. O caminhão de mudanças esperando na avenida Brás da Rocha Cardoso, logo ali, móveis indo de mão em mão até entrar na caçamba.

Caíam, então, a marretadas, as paredes de tijolos baianos grudados com a massa de pouco cimento e muita areia.

No Jardim Helena (zona leste de SP), 250 casas foram demolidas. Cenário de bombardeio, sobrou no meio dos destroços o "palácio" de Inácia (o termo é dela), dividido com o marido Edson Nascimento, 57, quatro filhos e a neta Amanda, 15 meses, além de quatro cães.

A casa da família tem quatro cômodos apertados e um cheiro fortíssimo de mofo. Fica em um alagado -o Tietê lambe-lhe a frente e insinua-se, cheio de lixo, no quintal. "Só saio daqui se receber outra casa para morar", diz Inácia.

Em 8 de dezembro do ano passado, com a chuvarada que caiu em São Paulo, o Tietê invadiu as casas que ficam na várzea. Foram quase dois meses de chuvas e cheias -os vizinhos de Inácia saíram tangidos pelas águas podres do rio.

A maioria concordou em sair em troca da chamada "bolsa-enchente" (R$ 300 mensais para pagar aluguel, mais R$ 200 para custear a mudança).
Outros conseguiram um apê em um conjunto habitacional construído pela CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional Urbano).

Era assinar o contrato para receber o bolsa-enchente e, no mesmo dia, a prefeitura mandava os homens para derrubar a casa -todos os imóveis, naquele trecho, foram levantados em área invadida, a menos de 30 metros do rio.

A rotina de destruição do Jardim Helena tem se repetido em outros bairros localizados na várzea do Tietê, região conhecida como Jardim Pantanal. "Até agora, 1.156 casas já foram demolidas", comemora o subprefeito de São Miguel Paulista, Milton Persoli.

Governo do Estado e prefeitura pretendem construir sobre os despojos o parque Várzeas do Tietê -tiram-se as casas e as pessoas e, no lugar, segundo o plano, surge um parque com churrasqueiras, quadras de esportes e ciclovia. "O parque vai preservar o meio ambiente, ajudando inclusive no controle das enchentes", diz o site do empreendimento.

Segundo a prefeitura, 10.191 famílias vivem ou viviam em áreas alagáveis da várzea do Tietê -exatamente aquelas em que deverá ser instalado o novo parque. Dessas, 4.093 já saíram -ainda faltam 6.098.

"Ainda falta muito", desafia o líder comunitário Cristóvão de Oliveira, 47, que mora na Chácara Três Meninas, também na várzea do rio, o local com menor índice de destruição. Oliveira tem orientado seus vizinhos a não aceitar o bolsa-enchente. "Só aceitamos trocar as casas por moradias definitivas. Não queremos esmolas", diz.

"A miséria nos trouxe até aqui. E, agora que construímos tudo isso, querem simplesmente nos tirar?", diz a retirante alagoana Analicia Rodrigues de Jesus, 32, mãe de sete filhos, moradora da única casa que sobrou de um quarteirão inteiro que se debruçava no Tietê, a poucos metros do CEU (Centro Educacional Unificado) Três Pontes, escola municipal com 1.500 alunos, piscina e teatro, bem na beira do rio.

Os vizinhos de Analicia saíram. Ela resolveu ficar -não achou uma casa que comportasse toda a sua família, custando R$ 300 ao mês de aluguel. Quatro dos filhos de Analicia estudam no CEU. "Se todo mundo for embora, quem ficará com essa escola linda?"

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