Além dos prejuízos para as famílias, vítimas chegam a custar R$ 35 mil ao Sistema Único de Saúde.
A frota de motos cresce no Brasil, e, com ela, o número de vítimas do trânsito com sequelas gravíssimas. Um estudo inédito do Hospital das Clínicas de São Paulo mostra que aqueles que escapam da morte enfrentam uma dura rotina. E a pesquisa traz uma surpresa: os motoboys não são mais a maioria das vítimas.
Um ano e meio numa cama. Ombro e braço esquerdos sem vida – os nervos que os ligavam à coluna foram rompidos. A perna não pode tocar o chão porque falta um pedaço do fêmur. O osso da coxa ficou no asfalto. Ele bateu em outra moto. As duas em alta velocidade.
No raio-x: o osso quebrado, a parte que falta e que uma cirurgia no dia seguinte vai tentar corrigir. “Eu acho que no imaginário do motoqueiro, às vezes passa a ideia de que existem duas situações possíveis: ou eu morro, e está resolvido o problema, ou vou viver. Só que entre a morte e a vida deste motoqueiro há uma série de problemas que vão causar um ônus para este indivíduo tremendo ao longo da vida dele”, diz Marcelo Rosa, médico do Hospital das Clínicas, em São Paulo.
No Instituto de Ortopedia do Hospital das Clínicas de São Paulo, o doutor Marcelo Rosa viu se multiplicar o número de mutilados pelos acidentes de moto. Para lá são encaminhados os casos mais graves, que precisam de cirurgias de alta complexidade. E ele coordenou um estudo para medir a dimensão dessa tragédia.
A pesquisa acompanhou 84 pacientes que foram internados no Hospital das Clínicas de São Paulo entre maio e novembro do ano passado. O resultado é um retrato assustador do impacto desses acidentes sobre a sociedade. Em custos hospitalares, no prejuízo provocado por esses jovens que deixam o mercado de trabalho e no efeito devastador para as vítimas e suas famílias.
“Abalou psicologicamente tudo. Minha esposa, meus filhos, tudo”, desabafa Danilo Américo, vítima de acidente de moto. Danilo ia no corredor entre os carros. Um deles fechou o espaço. “Já caí no chão sem o pé. Não tenho nem palavras para dizer o fato”, relembra a vítima.
O pé decepado. Trinta dias no hospital. Cinco cirurgias. Uma delas, reimplantou o pé. “Foi pesado, você ver a tua vida, a vida dos teus filhos se desestruturarem em fração de segundos. É muito difícil”, conta Mônica Navarro, esposa de Danilo. Ela parou de trabalhar dois meses para cuidar dele. Os gastos subiram, a renda caiu.
A enfermeira Carla Decanini faz um imenso esforço para ficar independente. Trinta dias no hospital, seu organismo perdeu a batalha para a infecção e ela teve uma perna amputada. “A gente se sente horrível, incapaz, feia. É horrível a sensação, muito ruim”, conta a enfermeira.
Carla ficou deprimida. Ganhou 20 quilos, perdeu o que ganhava cuidando de pacientes em casa, depois do trabalho no hospital. “Fora a parte financeira que a gente sofre com isso, fica nervosa porque o dinheiro não entra”, conta Carla.
Em média, os pacientes ficaram 18 dias internados e custaram 35 mil reais ao SUS cada um.
Encontrar quem sofreu mais de um acidente não é difícil. Alexsandro teve cinco! A mão foi esmagada contra a parede de um túnel, quando bateu a 70 por hora. Setenta por hora no corredor é muito ou é pouco? “É uma velocidade normal. Tem cara que anda a 80, 90”, explica Alexsandro.
“Oitenta por cento dos motoqueiros acham que não são culpados. Eles acham que está tudo certo, que andar a 70 por hora entre os carros é correto”, diz o Dr. Marcelo.
A 70 por hora, o impacto de um homem de 70 quilos contra o muro é de 13 toneladas.
Esta semana, o Conselho Nacional de Trânsito tornou obrigatório treinamento especial para motoboys, que só poderão exercer a profissão se tiverem 21 anos de idade e dois de habilitação.
Mas em São Paulo, eles são só um em cada quatro motoqueiros.
O perfil do acidentado também mudou. Há cinco anos, mais da metade das vítimas de acidente moto em São Paulo eram motoboys, que trabalham com a motocicleta. Hoje, 67% das vitimas são trabalhadores, que usam a moto como meio de transporte.
No país, são mais de 161 mil feridos por ano.
“É uma epidemia porque os números mostram um alto índice de acidentados de moto, um alto índice de sequelados, Isso tem que ser caracterizado como epidemia, pois tem tudo o que caracteriza uma epidemia, toda a mobilização da área da saúde, custos sociais. Ou seja, elas exigem medidas fortes como foi tomado na gripe suína”, alerta Marcelo.
Reencontramos Flávio de manhã no dia seguinte. Com muita dor antes de entrar para sua oitava operação. A equipe de cirurgiões trabalhou oito horas na perna dele. Em outro ponto do hospital, Carla vive um grande momento: aos 35 anos, reaprende a andar. Hoje leva a prótese para casa. “É um grande dia. Isso é muito bom. É como se tivesse a perna, mesmo”, afirma Carla.
Vinte e quatro horas se passaram. Mais 23 jovens brasileiros perderam a vida em cima de uma moto, quando Flávio acordou da cirurgia. O médico explica que é preciso esperar. Sem complicações, ele pode voltar a andar. “Moto na minha vida, nunca mais. De bens materiais, a gente não leva nada. Perde até a vida e a família”, garante Flávio.