“Artigo de Gilberto Dimenstein: Cidade aberta” – Folha de S.Paulo

 

GILBERTO DIMENSTEIN

Janeiro é revelador para SP: enchentes mostram que não aprendemos a lidar com saneamento básico

METADE DA POPULAÇÃO paulistana abandonaria a cidade se pudesse, segundo pesquisa do Ibope divulgada na semana passada, às vésperas do 457º aniversário da cidade, a ser comemorado na próxima terça-feira. Só 1% dos paulistanos se sentem seguros. Desde ontem, sou um dos que foram embora.

Neste domingo, estou lendo esta coluna num apartamento com vista para um minúsculo paraíso urbano.

É uma cidade de 110 mil habitantes, pouco maior que a Vila Madalena, coberta de neve. Estou em Cambridge, ao norte de Boston, nos EUA.

Não se vê lixo na rua, o ar é limpo, não há congestionamento. É possível saber pelo celular quanto tempo falta para o ônibus passar na frente de casa. Aqui se respira inovação e conhecimento em cada esquina, e ganhadores do Nobel (ou candidatos a ele) estão em todos os cantos devido à Harvard e ao MIT.

Nada disso me impedirá de sentir falta da palpitação de São Paulo. Comecei a sentir saudade muito antes de partir para participar de uma incubadora de projetos sociais em Harvard. O fascínio de São Paulo está na combinação do caos urbano com a crescente efervescência humana. É um gigantesco laboratório para observar a batalha do capital humano contra o caos urbano.

Em 1998, de volta de Nova York para São Paulo, depois de ter visto uma cidade rejuvenescer, aprendera como era uma comunidade com alto capital humano e senso de empreendedorismo. É o que vemos em Londres, Barcelona ou Bogotá.

O mês de janeiro é revelador para a cidade: as enchentes mostram que não aprendemos a lidar com o saneamento básico. O Campus Party reúne luminares de todo o mundo em torno do que há de mais sofisticado em tecnologia da informação, mas é pode parar por falta de luz, atacado pelo vento e pela chuva.

Saem os "campuseiros" e, quase em seguida, entram os estilistas, com a São Paulo Fashion Week, mostrando a habilidade da cidade de gerar beleza.

Neste mês, o toque de civilidade está no cinematográfico movimento de resistência para manter aberto o Cine Belas Artes, que pode ser tombado pelo patrimônio histórico.

Nessa gangorra, em que oscilam o caos e a civilidade, a tendência das coisas é melhorar.

A população da cidade está parando de crescer porque as mulheres têm menos filhos e cai a migração, o que facilita as ações sociais. A escolaridade aumenta, os habitantes ficam mais velhos, a economia paulistana está cada vez mais movida por serviços sofisticados, com elos por todo o planeta. Basta ver o tamanho da Bolsa de Valores. Borbulham talentos na dança, no teatro, no cinema, na música, nas artes plásticas, no design, na arquitetura e na culinária, movimentando a chamada economia criativa.

Em muitos segmentos do mercado de trabalho, há desemprego negativo, oferta de vagas muito maior que a procura. Um dado impressionante: pesquisa do Ibope revela que o paulistano acredita ser o fator mais importante de melhoria de uma cidade a qualidade do ensino.

Isso significa uma população cada vez mais crítica diante da barbárie cotidiana.

Assistimos à transformação da rua Augusta e à ocupação de galpões da Vila Leopoldina e da Barra Funda por publicitários, artistas, cineastas e produtoras, todos baseados na economia criativa.

Por isso sou relativamente otimista em relação à "cracolândia", o símbolo máximo do caos urbano, que deve transformar-se em ruas largas e praças, inspiradas na Rambla (Barcelona), no Campo Santa Margherita (Veneza) e no Bryant Park (Nova York).

Faz anos que se fala na revitalização da região da Luz, mas o que se vê nas ruas ainda é a degradação, apesar de notáveis equipamentos culturais, como o Museu da Língua Portuguesa, a Pinacoteca do Estado e a Sala São Paulo.

Mas nenhum outro investimento teria tanto poder de sintetizar a virada de uma cidade quanto recuperar sua área mais degradada.

O que está acontecendo em São Paulo deve-se muito mais à vitalidade da sociedade do que ao desempenho dos governantes -o que torna toda essa história palpitante para quem acha que o melhor de uma comunidade não é a paisagem, mas seus personagens.

PS- No próximo mês, meu site terá uma área aberta à participação no projeto Open City (Cidade Aberta), de educação, jornalismo comunitário e urbanismo, que vou desenvolver por 12 meses em Harvard, usando novas tecnologias de comunicação. O projeto, baseado na experiência do bairro-escola e na plataforma Catraca Livre, terá a colaboração do Google e da IBM. A ideia é criar um aplicativo para ajudar a transformar a cidade numa comunidade de aprendizagem.

gdimen@uol.com.br

Compartilhe este artigo