Em 1963, a Câmara Municipal montou uma CPI para apontar as falhas das obras contra as inundações, que remontam a 1841. A leitura do trabalho joga luz em um problema histórico – as causas das cheias, os danos e as promessas são sempre os mesmos
Rodrigo Brancatelli – O Estado de S.Paulo
Com seus óculos de aros bem grossos e feições um tanto rechonchudas, Francisco Prestes Maia foi interrogado às 10 horas do dia 19 de fevereiro de 1963 para explicar o inexplicável. Por que, depois de tantas promessas, projetos e obras, São Paulo continuava alagando pelas margens do Rio Tietê? A resposta do prefeito faz parte de um relatório de 145 páginas da CPI das Enchentes da Câmara Municipal, que mesmo com seus papéis amarelados ainda hoje pode ser considerado um dos mais extensos trabalhos para entender a ineficácia de muitas políticas públicas frente às inundações paulistanas.
"As enchentes são históricas, verificadas desde os primeiros tempos de colônia. Anualmente, o espetáculo se repetia em toda a extensão da grande várzea; deixando em seu leito normal, o rio ocupava a planície ribeirinha, transformando essa porção da cidade em vasta e malcheirosa lagoa." A frase, que poderia muito bem ter sido publicada nas páginas deste jornal nas últimas semanas, foi escrita no relatório de 1963 pelo então presidente da Comissão Especial da Câmara, o vereador Figueiredo Ferraz.
O trabalho de Ferraz e de outros seis vereadores no relatório de 1963 foi tentar descobrir os motivos de as obras de retificação dos Rios Tamanduateí e Tietê não surtirem os efeitos esperados. Não há respostas satisfatórias, diga-se. Mas a leitura hoje da reuniões da comissão serve para jogar luz em um problema secular, como pode ser visto abaixo – seja na década de 60 ou em 2011, as causas são as mesmas, os danos iguais e as soluções ironicamente idênticas.
Outros relatos também denunciaram, década após década, a precariedade dos rios e governos. E assim como relatos, também outros problemas foram se empilhando e aumentando os efeitos das inundações, transformando as "águas mansas" que encantaram os fundadores de São Paulo em um dos maiores flagelos dos paulistanos.
Ocupação. A retificação do Tietê encolheu o rio – de 46 quilômetros de extensão entre Osasco, na Grande SP, e a Penha, ele passou a ter 26 km. Assim, uma área de 33 milhões de metros quadrados que eram inundáveis puderam ser urbanizadas. "É uma grande área a ser aproveitada", diziam os vereadores, queriam incentivar a ocupação das margens do Tietê. "Não é questão apenas de hidráulica e de valorização das terras, deve ser motivo, também, para o aformoseamento da cidade." A história, no entanto, mostrou que a várzea tem a função de transbordamento; a ocupação dela resulta numa piora nas inundações. Se os vereadores da Câmara de 1963 pudessem ver a São Paulo de hoje, talvez não tivessem a mesma opinião – a saúde do rio foi deixada de lado e a retificação causou problemas de degradação urbana e ambiental cujas soluções são cada vez mais difíceis.
Problema recorrente. Desde 1841, ou há 170 anos, o governo municipal investe em obras para tentar remediar as inundações da região central – o primeiro planejamento de canalização do Tamanduateí deve-se ao engenheiro Carlos Abraão Bresser. Em 1921, foi a vez do prefeito Firminiano Pinto defender a necessidade da canalização do Tietê, desde Guarulhos até a Lapa. "Com 85% das obras concluídas, as inundações continuam a castigar a cidade e sua população, acarretando prejuízos imensuráveis", escreveu o vereador Figueire do Ferraz em seu relatório. "E parece que as inundações aumentam de ano a ano, motivando um justo e revoltado clamor popular."
Autoridade metropolitana. Já em 1963, discutia-se a importância de uma "organização supermunicipal" para lidar com os problemas crescentes da região metropolitana. "Consideraremos melhor a conjugação de esforços, reunidos em uma organização", afirmou Prestes Maia. "Seria uma organização para operar livremente nos municípios e, de maneira imparcial, determinar as obras necessárias.". Até hoje a discussão continua, sem que a autoridade metropolitana tenha sido criada na Grande São Paulo.
Assoreamento. Atualmente, os 70 grandes rios, córregos e galerias que deságuam no Rio Tietê contêm, juntos, pelo menos 364,7 mil toneladas de areia e lixo acumulados nos leitos . Com as últimas chuvas, o governador Geraldo Alckmin (PSDB) definiu como medida urgente a retirada desses 4,2 milhões de metros cúbicos em detritos do Tietê neste ano. Segundo o governo, no ano passado foram retirados apenas 1 milhão de metros cúbicos. Em 1963, de acordo com dados da CPI das Enchentes, o assoreamento era calculado em 120 mil metros cúbicos por ano. "Chegamos à situação de precisar manter uma drenagem permanente de 1,5 milhão de metros cúbicos por ano, tanto quanto é feito pelo Porto de Santos", disse o prefeito Prestes Maia. "Vamos manter cinco dragas e seis escavadeiras para o trabalho. Além dos problemas dos rios, há o dos córregos, bueiros e galerias pluviais, a limpeza foi desleixada durante várias administrações."
Problema sem fim. Durante o seu depoimento na CPI das Enchentes, o prefeito Francisco Prestes Maia já chamava a atenção para a urbanização desenfreada da Grande São Paulo. "Há um fator de inundações quase irremediável, a urbanização crescente do alto Tietê e do ABC", disse. "São feitos arruamentos, terraplenagens, cortes de matas, aterro das várzeas e, por consequência, desaparecem aqueles bolsões que retinham as águas. Isso cria situações trágicas para a capital", afirmou o prefeito. O próprio Prestes Maia define perfeitamente a relação dos paulistanos com os rios da cidade. "É o próprio homem que provoca e que age contra o rio, é o homem que lhe faz violência, que lhe estreita o leito e retira os reservatórios que ele naturalmente fizera", disse ele aos vereadores da CPI. "Estamos a dançar o minueto: dois passos para frente e dois passos para trás", disse Prestes Maia.