Episódios violentos afetam 90% dos paulistanos e 10% deles têm a saúde mental afetada por isso
VERÔNICA DANTAS
Mais que um problema de segurança pública, a violência é um caso de saúde mental. Cerca de 90% dos moradores da capital já passaram por algum tipo de evento traumático: se não foram assaltados à mão armada, sequestrados ou vítimas de tentativa de homicídio, ao menos testemunharam uma dessas situações. Desse total, 10% das pessoas desenvolveram, ou ainda terão, no futuro, transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) – o equivalente a mais de 1 milhão de indivíduos, se considerados os números do Censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Os dados, considerados assustadores pelos psiquiatras, integram um estudo sobre violência e trauma divulgado pela publicação científica Journal of Molecular Neuroscience e apresentado em junho, durante a sétima edição do Congresso Brasileiro de Cérebro, Comportamento e Emoções, em Gramado (RS), acompanhado pelo JT.
Realizado simultaneamente em São Paulo e Rio de Janeiro, sob a coordenação do Instituto do Milênio CNPq Saúde Mental e Violência e pelo Programa de Atendimento às Vítimas de Violência e Estresse (Prove) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), o levantamento apontou também que a incidência de todos os transtornos mentais é de 19% nessas populações– o que inclui depressão, ansiedade e pânico, por exemplo. Sendo o TEPT, portanto, o mais frequente deles.
No Brasil, o TEPT apresenta características peculiares em comparação a outros países. Esse quadro psiquiátrico, comum em pessoas que passaram por situações com risco de perder a vida, costuma estar relacionado a grandes desastres naturais na literatura internacional. “Aqui, o que chama a atenção é a violência”, avalia o coordenador do programa de pós-graduação do Departamento de Psiquiatria da Unifesp, Jair Jesus Mari.
“O dado que assusta é que 10% dos 90% que passaram por uma situação traumática vão adoecer. É um número alto”, avalia a doutoranda do Departamento de Psiquiatria da Unifesp Nina Valente, responsável pela parte genética do estudo. “Normalmente, o trauma ocorre após guerras, tsunamis e terremotos. Não por violência. No Brasil, esse problema de saúde mental é diferente em relação ao resto do mundo. No País inteiro tem gente que passa por situações de trauma e está adoecendo”, completa.
Nina frisa que a pesquisa da Unifesp é apenas o início de um trabalho que deverá ser expandido. O estudo ouviu 2.536 pessoas em São Paulo e 1.208 no Rio. Além das entrevistas, houve coleta de saliva para que dados biológicos fossem comparados aos epidemiológicos. Os resultados mostraram que 30% dos entrevistados já sofreram ao menos um assalto à mão armada, 17% tiveram algum tipo de violência doméstica, de 7 a 9% passaram por violência familiar e 2,3% têm antecedentes de estupro.
Nos grupos mapeados, Nina se preocupou em descobrir a razão pela qual algumas pessoas expostas ao trauma ficaram doentes e outras não. “As que adoeceram apresentaram predisposição genética. Carregam um gene que induz ao desenvolvimento do TEPT”, esclarece.
O estresse pós-traumático é caraterizado, sobretudo, por lembranças dolorosas e recorrentes (outros sintomas ao lado). “Algumas doem tanto que as pessoas não querem lembrar delas”, diz a pesquisadora norte-americana Rachel Yehuda, uma das diretoras do grupo de tratamento de trauma criado em Nova York após o atentado ao World Trade Center, em 2001, e diretora da Traumatic Stress Studies Division at Mount Sinai School of Medicine.
Cicatrizes psicológicas decorrentes da violência ainda incomodam a família da auxiliar de enfermagem Rosa Maria Leite Alves, que morreu atropelada, em abril, após deixar uma festa de casamento em Santo André. O marido dela nunca mais foi o mesmo: abandou o emprego, está com a diabete descontrolada e vive calado.
Colaborou Felipe Oda