Mais da metade dos municípios brasileiros utiliza águas subterrâneas para abastecer a população – e pouco se sabe sobre elas. Para mapear esse tesouro sob o solo, a Agência Nacional de Águas (ANA) está coordenando o monitoramento dessas grandes reservas subterrâneas de águas, chamadas de aquíferos. O objetivo é criar uma agenda nacional para a gestão integrada dos recursos hídricos subterrâneos e de superfície.
Na mira estão os Aquíferos Açu, Urucuia, Jandaíra e as águas subterrâneas da Amazônia. O Aquífero Guarani, o mais estudado, tem um plano específico voltado para as áreas metropolitanas, sob as quais ele se encontra.
Segundo a ANA, 39% dos municípios brasileiros – ou 2.153 cidades – são integralmente abastecidos por águas subterrâneas, enquanto 14% também usam águas superficiais. O restante depende das superficiais, mas a pressão sobre elas aumenta a importância das que estão no subsolo.
Os aquíferos são formações rochosas que permitem que a água se infiltre e se movimente em seu interior. A ANA contabiliza no Brasil 27 sistemas aquíferos importantes, tanto para abastecimento público como para a agricultura, que usa na irrigação parte da água subterrânea disponível no País.
‘Os aquíferos são reservas estratégicas’, afirma Paulo Varella, diretor da ANA. ‘Sabemos, de antemão, que há problemas ao redor das grandes cidades, principalmente ligados à falta de saneamento’, afirma.
Entre as principais preocupações dos especialistas está a capacidade de preservação da qualidade dos recursos encontrados entre as rochas, no subsolo. Urbanização desordenada, uso intensivo de pesticidas nas lavouras, reflorestamento, salinização e outros estão levando autoridades e estudiosos a pensar sobre a gestão dessas reservas.
Os aquíferos possuem as chamadas ‘áreas de recarga’, locais por onde a água da chuva se infiltra e recarrega o sistema. Nessas áreas há maior vulnerabilidade da contaminação vinda da superfície. Elas geralmente correspondem a afloramentos e locais onde a ‘capa’ protetora, que pode ser uma rocha, é fraturada ou apresenta ‘janelas’ (descontinuidades).
Em São Paulo, que usa 80% do total retirado anualmente pelos quatro países que têm recursos do Aquífero Guarani (Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai), a Secretaria de Meio Ambiente já discute a criação de lei que institua uma área de proteção e recuperação de mananciais específica para o afloramento do Guarani.
Vulnerabilidade. De acordo com levantamento coordenado pelo Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), ligado ao governo paulista, cerca de 4 mil km² da região de proteção proposta são considerados altamente vulneráveis à contaminação (mais informações nesta página).
Além de levar em consideração a proteção natural que os aquíferos têm, os especialistas observam a persistência e a mobilidade dos contaminantes que a reserva pode estar recebendo.
‘Quando há quantidade o suficiente, é só uma questão de tempo até os contaminantes chegarem às águas subterrâneas, pela persistência. Agora, há contaminantes que se degradam ou que não chegam mesmo’, explica Ricardo Hirata, professor do Instituto de Geociências da USP.
‘Metais pesados, por exemplo, se movem pouco e ficam presos. Já os nitratos são muito móveis e persistentes’, diz Hirata.
Ele afirma que os fertilizantes nitrogenados, aterros e lixões, redes de esgoto com vazamentos e locais de estoque de matéria-prima industrial são as fontes de contaminantes que mais preocupam os especialistas.
É consenso que a qualidade das águas do Guarani é ainda muito boa. Mas há preocupação com o excesso de exploração e o rebaixamento dos níveis de água nas cidades que mais utilizam os recursos.
Recentemente, um estudo financiado pelo Banco Mundial revelou que o Guarani não tinha tanta água assim como se pensava. ‘As pessoas diziam que era uma reserva de 30 mil km³ de água. Isso é irreal. Porque nós não temos acesso a toda essa água. Temos acesso, na área confinada, a cerca de 2,1 mil km³ – mais os 40 km³ de recarga anual’, explica o geólogo Ricardo Hirata, da USP.
Segundo ele, usamos anualmente cerca de 1 km³ de água do Guarani: 94 % no Brasil, 3% no Uruguai, 2% no Paraguai e 1% na Argentina. Cerca de 80% do total é usado para abastecimento público e 15%, para processos industriais.
Se a disponibilidade de uma reserva que atrai atenção e investimentos ainda não é consenso, o potencial de aquíferos recém-descobertos, como o Alter do Chão, na Região Norte, é totalmente desconhecido. No ano passado, uma equipe da Universidade Federal do Pará (UFPA) divulgou a descoberta de uma reserva entre Pará, Amazonas e Amapá que seria bem maior do que o Guarani.
‘Ainda não sabemos nada sobre ela. Temos de fazer mapas de fluxo hídrico subterrâneo para saber quais as regiões de recarga e transformá-las em área de proteção ambiental’, explica Milton Matta, geólogo da UFPA.
O Alter do Chão abastece 100% de Santarém (PA) e quase toda Manaus (AM). ‘Não sabemos, por exemplo, as consequências do plantio de soja em Santarém. E como não conhecemos as áreas de recarga, não podemos medir as dimensões do problema’, diz Matta. Por essa razão, a ANA destinou R$ 4,5 milhões para um mapeamento da hidrodinâmica das águas subterrâneas da Amazônia.