Silvana viaja 40 km por dia para buscar a filha na creche; com o trânsito, já se atrasou e sofre ameaças de a menina ser levada para o Conselho Tutelar
LUCAS DE ABREU MAIA – O Estado de S.Paulo
O celular de Silvana dos Santos tocou em um fim de tarde em fevereiro. Do outro lado da linha, a diretora da creche onde estuda a filha de Silvana, Ketellen, de 3 anos, deixou claro: eram 17h30, e, se nenhum responsável fosse buscar a criança, ela seria levada ao Conselho Tutelar. Mesmo se Silvana saísse naquela hora do hotel onde trabalha como camareira em Perdizes, zona oeste, não chegaria a tempo à creche Ponte Pequena, na Luz. Preso no trânsito, o pai de Ketellen, o motorista João Batista, tampouco conseguiria buscá-la. Ficou a cargo do tio apanhar a criança.
Silvana trabalha no hotel dia sim, dia não, das 7h às 19h; a creche Ponte Pequena abre às 7h e fecha às 17h. Diante da incompatibilidade de horários, a solução encontrada por ela foi pagar R$ 70 à mãe de uma colega de Ketellen para que busque a criança nos dias em que está no trabalho. Por duas vezes, contudo, Ketellen ficou na creche além do permitido, sob risco de ir para o Conselho Tutelar. "Dá muito medo", diz a mãe sobre os dias em que não consegue buscar a menina. "Ela é pequenininha, não sabe se defender de nada, de ninguém."
Para Silvana, manter a filha na creche é a única forma de conciliar trabalho e maternidade – um exemplo de como a Prefeitura precisa pensar suas políticas públicas de forma integrada; sem creche, não há como muitas famílias garantirem suas rendas. Em dezembro, ela e o companheiro mudaram da Luz para Ermelino Matarazzo, na zona leste. Com medo de perder a vaga de Ketellen na creche e se tornar uma das 1.400 mães do bairro que não conseguem matrícula para os filhos pequenos, Silvana não avisou a ninguém na Ponte Pequena. É por isso que, desde então, Ketellen precisa viajar 40 quilômetros de ônibus de casa para a creche todos os dias.
O receio de Silvana de perder a matrícula é justificado. Em toda a cidade, mais de 123 mil crianças de até 3 anos e 8 meses estão fora da creche por falta de vagas. O prefeito Gilberto Kassab – que na campanha eleitoral de 2008 prometeu "acabar com as filas" na educação infantil – triplicou as vagas no setor. Em 2005, 60 mil crianças estavam matriculadas. Hoje, são 203 mil. Isso, no entanto, está longe de ser uma solução. O déficit hoje é mais que o dobro do que há quatro anos, quando Kassab foi reeleito. A explicação da Prefeitura: quanto mais creches existem, mais gente tenta matricular os filhos. A realidade mostra também que mais investimentos são necessários – para se ter ideia, o governo municipal teria de criar 404 novas vagas a cada dia para zerar a fila.
A falta de vagas em creches é um problema vivido na cidade de São Paulo há décadas. Os locais onde há maior necessidade são, justamente, os bairros mais pobres, como Capão Redondo (5,7 mil) e Campo Limpo (5,2 mil), na zona sul, e Brasilândia (3,2 mil), na zona norte. Isso sem falar nas outras fases da educação infantil – de acordo com dados da própria Prefeitura, aguardam vaga quase 33 mil crianças, o que significa a população inteira da cidade de Aparecida.
No primeiro ano de vida de Ketellen, a camareira nem sequer procurou matricular a filha, sabendo de toda essa dificuldade. Só quando a menina completou 1 ano Silvana fez a primeira tentativa. Foi preciso esperar mais um ano até conseguir a vaga. De junho de 2009, quando Ketellen nasceu, a setembro de 2010, Silvana não pôde trabalhar. Sem espaço na creche, ela não tinha com quem deixar a filha. "Antes eu fazia bico. Um biquinho aqui, outro ali, porque a tia dela não trabalhava e ficava com ela pra mim."
Eleições. Durante a campanha à Presidência em 2010, Dilma Rousseff prometeu construir 6 mil creches no País. A meta, ainda longe de ser atingida – pouco mais de 400 unidades foram entregues até agora -, voltou à pauta em maio, no lançamento do programa Brasil Carinhoso, que visa a eliminar a miséria na primeira infância. O engajamento do governo federal indica que o tema permeará a disputa entre o tucano José Serra (que antecedeu Kassab na Prefeitura) e o ex-ministro da Educação Fernando Haddad (PT).
A falta de creches na periferia ainda cria um problema colateral – os deslocamentos. Ketellen passa duas horas e meia por dia dentro de um ônibus; uma hora e meia para chegar à creche, outra hora para de lá voltar. "Se a gente pegar muito trânsito, ela já chega em casa dormindo."
Para que Silvana consiga trabalhar, é o pai quem leva a criança para a Ponte Pequena. João Batista e a filha saem de casa de segunda a sexta-feira às 5h40. "Graças a Deus, eu posso contar com ele pra qualquer coisa", diz. Quando não trabalha, é Silvana quem busca a criança na Luz às 16h – e, para isso, sai de casa às 14h40. O tempo que passa no trânsito a impede de conseguir um outro emprego nos dias de folga. Se precisasse pagar à mãe da colega de Ketellen para buscar as crianças todos os dias, os R$ 70 passariam a ser R$ 150. Juntos, Silvana e Batista ganham menos de R$ 1.800.
O tempo que perde no transporte público – seja no trajeto para o trabalho, seja para buscar a filha na creche – faz com que a pernambucana Silvana queira voltar à cidade natal, Garanhuns – "A mesma do Lula", enfatiza. É a resistência de Batista que a impede. "Sei que a educação para minha menina é melhor aqui", reconhece, sem esconder a saudade da família, que ficou no Nordeste. "Só que o pai não quer ir comigo nem deixa eu levar a filha."
Silvana se ressente de só ter estudado até a 6.ª série (hoje equivalente ao 7.º ano do ensino fundamental) e promete que com Ketellen será diferente. "Como se escreve o nome da sua filha?", quis saber o repórter. "K, E, T, E, dois Ls, E, N", soletrou . "Complicado, né? O pai que escolheu. Demorei pra aprender, mas me esforcei, porque é o nome da minha filha."