Por: Redação/ Rede Brasil Atual
São Paulo – Se dependesse do Plano Diretor Estratégico (PDE), votado pela Câmara Municipal e sancionado pela prefeita Marta Suplicy (PT) há dez anos, a capital paulista seria hoje uma das cidades mais ecológicas do Brasil, principalmente no que diz respeito à destinação do lixo produzido por seus moradores. Muitos princípios da Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), instituída pela Lei Federal n° 12.305, aprovada em 2010, já estavam esboçados em 2002 pelo PDE paulistano. No decorrer da última década, porém, nem tudo foi cumprido – ou, se foi, ficou aquém das expectativas.
Um dos mais recentes exemplos do descompasso entre as últimas gestões da prefeitura e as determinações do plano diretor são os pontos de entrega voluntária de materiais recicláveis. Os chamados PEVs luzem no artigo 72 da lei de planejamento urbano desde 2002, mas só foram instalados em 2012. Agora, podem ser vistos em alguns locais, como no Vale do Anhangabaú, materializados em grandes contêineres de plástico verde. Nos bairros mais exclusivos como os Jardins, há PEVs mecanizados, desenhados em alumínio. Bonitas ou grosseiras, as lixeiras ecológicas chegaram tarde – e a demora fez com que perdessem o bonde: outrora solução inovadora para a reciclagem, a medida atualmente vai na contramão da Política Nacional de Resíduos Sólidos.
“Quando tinha de fazer, não fez, e agora, em época de eleição, a prefeitura faz o que já não é mais sua atribuição”, afirma Elisabeth Grimberg, coordenadora executiva do Instituto Pólis. A nova política determina que o poder público não é mais o único responsável pela gestão do lixo: empresas e consumidores também têm seus deveres. De acordo com a legislação, fabricantes, importadores, distribuidores e comerciantes devem providenciar a coleta do lixo que eles mesmos produzem, e que podem ser reutilizados. Para tanto, devem estabelecer sistemas de logística reversa: o instrumento prevê o retorno de um produto do seu ponto de consumo ao ponto de origem, e responsabiliza todas as partes envolvidas no processo.
Apesar do descompasso, o valor total do investimento para implantação dos 700 contêineres mecanizados em São Paulo é de R$ 12 milhões – cada um deles custa mais de R$ 17 mil. Quanto aos receptáculos de plástico, a prefeitura desembolsará cerca de R$ 1,5 milhão para distribuí-las pela cidade. “Está se gastando muito recurso, mas não exatamente com coleta seletiva: em 2014, devido ao Plano Nacional, todo o lixo reciclável deverá ser coletado separadamente”, complementa Nina Orlow, especialista em meio ambiente da Rede Nossa São Paulo. “Esse investimento nada tem a ver com separação do lixo, e tampouco ajuda o trabalho dos catadores. A gente precisa de outra forma de cuidar dos resíduos. Se você joga tudo num contêiner, não vai saber quem responsabilizar.”
Catadores
Mas o plano diretor não se limitou aos PEVs. Pelo contrário, traçou o itinerário a ser seguido pelo poder público para potencializar a reciclagem no município, apoiar as cooperativas de catadores, recuperar áreas contaminadas por aterros sanitários, universalizar a coleta de lixo comum – inclusive nas regiões ainda carentes de urbanização – e até mesmo promover a geração de energia elétrica a partir dos detritos orgânicos descartados pelos paulistanos.
A prefeitura argumenta que desde 2003 mantém um programa socioambiental de coleta seletiva cujo intuito é estimular a preservação e reciclagem de recursos, além de promover a reinserção social de catadores, beneficiando 1.200 famílias com renda mensal de até R$ 800. “O programa aumentou em mais de dez vezes o volume de materiais coletado, triado e processado, passando de 20 toneladas por dia, em 2003, para 214 toneladas, em 2011”, diz a Secretaria de Serviços. É um aumento de 1.000%, resultado de investimentos mensais de R$ 2,4 milhões na estrutura de trabalho das 21 cooperativas conveniadas ao programa municipal de reciclagem.
“Isso inclui caminhões com motoristas, combustível e manutenção, equipamentos de trabalho e segurança, além do galpão e consumos de energia e água”, enumera o governo paulistano. “Resta às cooperativas apenas os trabalhos de triagem e venda do material seletivo.” Mas nem sempre esses benefícios estão garantidos, e a destinação de recursos não consegue abarcar todos os envolvidos.
A cooperativa Granja Julieta Novos Valores, no bairro de Socorro, zona sul, está conveniada com a prefeitura desde o início do programa, porém até meados do ano não tinha os equipamentos propagandeados pelo governo municipal. “Temos luvas, uma empilhadeira manual e calças, mas ainda estamos sem a esteira, essencial para a triagem, e as jaquetas”, disse Mara Santos, presidenta da cooperativa, que sofreu um incêndio em 2008 e ainda espera que o poder público lhes destine um novo local.
Convênios
Os catadores que trabalham nas centrais de triagem também se queixam por não receberem remuneração alguma da prefeitura além do dinheiro que obtêm com a venda dos materiais. “O que ganhamos não é suficiente para viver”, revela Guiomar Silva, membro da coordenação do Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR). Guiomar trabalha na cooperativa Sempre Verde, localizada no Jabaquara, na zona sul, e está no ramo há 15 anos. Assim como muitas centrais de triagem em operação na cidade, a Sempre Verde não está conveniada com a prefeitura. “É comum o governo falar que não há mais espaço para abrigar as cooperativas em novos galpões.”
O MNCR estima que aproximadamente dois mil trabalhadores vivem de recolher papel, papelão e metais pela cidade. “Se há alguma reciclagem em São Paulo é por conta dos catadores”, reconhece Elisabeth Grimberg. Mas as centrais conveniadas com o poder público estão proibidas de receber materiais dos chamados carroceiros. Apenas o serviço oficial de coleta seletiva, realizado pelas empresas EcoUrbis e Loga, pode abastecer as 21 cooperativas oficiais.
Isso apesar de a coleta seletiva oficial alcançar menos da metade dos domicílios paulistanos: apenas 41% das casas – em 75 dos 96 distritos da capital – são atendidas pelos caminhões terceirizados. Nina Orlow, da Rede Nossa São Paulo, discorda da decisão da prefeitura em excluir os catadores do sistema municipal de reciclagem. “Os trabalhadores que puxam carroça fazem uma enorme diferença na coleta seletiva da nossa cidade, pois impedem que muitos resíduos sejam enviados ao aterro sanitário.”
A prefeitura recolhe diariamente cerca de 12 mil toneladas de lixo na porta das residências paulistanas. Desse montante, apenas 20% são passíveis de reciclagem. No entanto, tão somente 1% desse lixo é reciclado formalmente. Sem os catadores, esse percentual seria ainda menor: Elisabeth Grimberg, coordenadora executiva do Instituto Pólis, afirma que, na prática, a quantidade reciclada supera as estatísticas governamentais,que consideram apenas os materiais que chegam às centrais conveniadas. Ficam de fora do cálculo tudo o que chega às demais centrais – cujo número é desconhecido – e o material coletado por carroceiros.
No caminho oposto
A partir de 2014, de acordo com a nova Política Nacional de Resíduos Sólidos, nenhum lixo que ainda possa ser reutilizado – seja para compostagem, no caso dos orgânicos, seja para reciclagem, no de plásticos, papel, vidro etc. – poderá ser depositado nos aterros sanitários. Quem descumprir a norma pode ser penalizado. Porém, para Nina Orlow, da Rede Nossa São Paulo, a prefeitura da capital está no caminho contrário das orientações nacionais.
A especialista afirma que a cidade não terá condições de aplicar-se à lei de resíduos sólidos nos próximos dois anos. “A coleta seletiva não é questão de viabilidade, é um dever. O lixo só vai para o aterro se for rejeito. É simples assim. A colocação de contêineres nas ruas de São Paulo está indo na contramão daquilo que é preciso fazer até 2014. É muito dinheiro para pouco retorno. Eles estão esquecendo completamente da coleta seletiva”, lamenta.
Luzia Honorato, da coordenação do MNCR, também vê as decisões da atual gestão como um entrave à lei nacional. "Isso é um desrespeito à política de resíduos sólidos, que prevê uma sequência de fatores para resolver o problema do lixo no Brasil. Primeiro é reduzir o consumo, depois reciclar, reutilizar e assim, posteriormente, darmos um destino final adequado. O que eles estão fazendo é o que já se faz há anos: recolhe, mistura e manda para o aterro".