Para Regina Meyer, São Paulo tem solução – mas sem fórmula mágica. O projeto urbano deve ter continuidade.
É inconcebível planejar e tocar qualquer grande obra em São Paulo enquanto existirem pessoas morando em áreas de risco. Este é o recado de Regina Meyer, professora titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, para Fernando Haddad. “A meta número zero do novo governo deve ser tirar as pessoas dessas áreas e oferecer alternativa de moradia. É inadmissível desabar o morro na cabeça das pessoas quando chove”, diz.
Hoje, há 93 áreas com alto risco de desabamento ou deslizamento na cidade, onde moram 98 mil pessoas. No total, 519 mil vivem em áreas da capital com alguma ameaça, segundo os dados mais recentes do Instituto de Pesquisas Tecnológicas, divulgados em 2011.
Os números espantam e mostram que ainda há muito a ser feito. Tanto é que, em seu primeiro dia de trabalho, Haddad anunciou um pacote de medidas de emergência de combate a enchentes. Ao todo, foram definidas 16 ações para o período de chuvas. Entre elas, uma nova parceria da Prefeitura com o IPT para que as áreas de maior risco sejam monitoradas diariamente. “É fundamental que o novo prefeito considere de forma muito séria as obras infraestruturais deixadas pelo governo anterior”, afirma Regina.
Ela lembra, no entanto, que a melhora de grandes metrópoles aconteceu de forma lenta e gradual. “Não é um processo revolucionário”. Mas São Paulo tem solução. “A cidade passa agora por um momento-chave, de mudanças obrigatórias”.
Abaixo, os melhores trechos da entrevista.
Ao assumir a Prefeitura, o primeiro ato de Haddad foi anunciar medidas de combate a enchentes, como o monitoramento diário de áreas de risco. Esse é o caminho?
O monitoramento é apenas uma medida de emergência. A meta número zero do novo governo deve ser tirar as pessoas dessas áreas e oferecer alternativa de moradia. É inadmissível desabar o morro na cabeça das pessoas quando chove. É inconcebível fazer qualquer obra gigantesca na cidade se ainda existirem pessoas morando em áreas de risco. Não sou contrária a fazer um teatro, uma biblioteca, mas São Paulo precisa de uma política extremamente eficiente e rápida para a remoção dessas pessoas.
O período de chuvas é determinante para a nova gestão?
É fundamental que o novo prefeito considere de forma séria as obras infraestruturais deixadas pelo governo anterior, como o projeto de drenagem urbana para as enchentes – o chamado Plano de Macrodrenagem. Entregue ao poder público em 1994, ele foi revisto na gestão Kassab por um grupo de engenheiros da Escola Politécnica da USP. É preciso que seja retomado com urgência e de forma efetiva.
É possível recuperar SP?
Não tenho dúvida. A melhora de uma cidade, no mundo inteiro, é um processo lento. Não é revolucionário. Mas São Paulo passa agora por um momento-chave, de mudanças obrigatórias.
Que mudança?
O grande drama da cidade é sua frota de automóveis. Na década de 30, surgiram os primeiros projetos em relação ao transporte público, havia um corpo técnico discutindo o Metrô, que só começaram a ser realizados de fato no final dos anos 70. Um atraso fenomenal e que teve grande impacto na cidade. Se tivéssemos recuperado o tempo perdido, teríamos uma São Paulo muito melhor do que ela é.
Investir no Metrô é responsabilidade da Prefeitura?
Não há como voltar atrás em relação à presença da Prefeitura na produção do Metrô. É preciso estar presente não só na dotação de verbas, mas, também, nos projetos relativos ao entorno das estações.
E os corredores de ônibus?
São Paulo vive a disputa dos pneus versus trilhos. É um desserviço para a população. A cidade poderá ficar muito mais bem servida se tiver uma articulação desses dois sistemas. Os corredores de ônibus são uma dívida com a cidade e Haddad falou muito dela durante a campanha. O que tinha que ser pensado já foi pensado. Agora é mãos à obra. É preciso articular esse sistema com o resto da cidade.
Como fazer isso?
As questões municipais, cada vez mais, vão precisar de um escopo metropolitano. São Paulo já não é vista como um município só. A cidade vai além de seu desenho. Hoje, acho difícil pensar São Paulo sem incluir os 38 municípios que formam a Região Metropolitana.
Um dos debates da eleição foi sobre bicicletas e ciclofaixas.
Elas funcionam bem, mas essa questão ainda precisa chegar a um meio-termo. Por enquanto, há uma espécie de ‘endeusamento’. São Paulo não é fácil para bicicleta. As ciclofaixas fizeram com que as bicicletas fossem mais bem recebidas pela cidade, mas isso é ridiculamente pouco perto do que se precisa. E onde tem gente andando de bicicleta para valer – na periferia –, a ciclofaixa não chegou. Está mais para lazer do que para atender o operário.
Um dos últimos projetos enviados por Kassab à Câmara prevê um limite de vagas nos prédios para diminuir o uso do carro na região da Barra Funda.
Quando se fala em diminuir as vagas nos estacionamentos, quem acaba penalizado é o próprio usuário. A cidade foi montada para que as pessoas tivessem um automóvel. Existe gente que não tem casa própria, mas que comprou seu carro porque é a única maneira de locomoção. O número de pessoas que moram em um lugar e estudam ou trabalham em um outro muito distante é cada vez maior. A entrada de automóveis é facilitada pelos governos, mas não é medido o impacto.
Também durante a campanha eleitoral, Haddad falou muito da recuperação do centro da cidade.
O diagnóstico não é inédito. Já foi feito por outros governantes. Da década de 90 para cá, todos adotaram o discurso de que o centro precisa receber habitação. Mas esquecemos de olhar para os bairros que abrigavam as fábricas – onde foram liberados muitos terrenos, passíveis de abrigar novos modelos de ocupação, gerando uma maior densidade em São Paulo.
Uma maior densidade seria melhor para a cidade?
Densidade é palavra de ordem em São Paulo. Com maior densidade, tem mais gente andando a pé, com maior distribuição e presença nos equipamentos públicos. Seria uma cidade mais viva, muito mais interessante e, às vezes, com menos automóveis nas ruas.
Como tornar isso realidade?
Para adensar uma cidade é preciso ter uma política do verde extremamente organizada, uma política pública de arborização, de presença de pequenos parques. A densidade não é só o aumento de pessoas dentro de uma área. É o aumento com qualidade. A Vila Mariana, por exemplo, teve um adensamento grande. Todas as casinhas foram substituídas por edifícios de 10, 12, 15 andares. O que aconteceu? Um bairro bem localizado porque tem infraestrutura, tem transporte, tem isso e aquilo, perdeu população.
Por que isso aconteceu?
Porque as construções na Vila Mariana têm um padrão classe A: prédios com apartamentos muito grandes, com cinco vagas na garagem, mas para um número pequeno de moradores. A densidade não é só construir mais, é construir dentro de um padrão que se tenha uma família de cinco pessoas vivendo dentro de um espaço menor.
Para que o bairro não se torne inacessível.
Essa é recuperação do espaço público é fundamental. Temos que sair de casa e encontrar uma calçada generosa, um espaço que pode ser usufruído. É preciso levar as pessoas para as calçadas, para a rua.
Haddad já sinalizou que deve mudar o projeto da Nova Luz, bandeira da gestão Serra/Kassab. Como vê esse movimento?
A Nova Luz é um problema grave. É um espaço extremamente importante, pela presença da Estação da Luz e pelo papel que ela tem no transporte de São Paulo. Foi investida uma quantidade de dinheiro gigantesca naquele entorno. É só olharmos para a Sala São Paulo, Pinacoteca, Estação Pinacoteca e, sobretudo, para a Linha 4 do metrô. A Nova Luz é um projeto complexo. Porque entrou em cena com premissas de recuperar um espaço degradado, de renovação urbana. E não é só isso. A Santa Ifigênia é um lugar com uma atividade econômica incrível. Vem gente do País inteiro e até de fora para fazer compras ali.
É impossível parar a região.
Mesmo durante obras, não se pode interromper as atividades comerciais. E tem outra questão importante: o poder público está usando um instrumento novo – a concessão urbanística. Desconhecida, complicada e que gera desconfiança.
E também tem a Cracolândia.
A Cracolândia nasceu com o aspecto decadente daquele lugar. É uma região em que há muito emprego e, por incrível que pareça, a droga foi convivendo com essa dinâmica. Aqueles comerciantes e os usuários da droga, do crack, têm um convívio. É absolutamente indesejável, mas está lá. Uma única gestão não dá conta de mexer nas tantas vertentes.
Era inevitável que o problema ficasse para a esta gestão?
A gestão Kassab já estava desgastada para levar o projeto à frente. A revisão é o melhor a ser feito. Mesmo que o Serra tivesse vencido as eleições e que as pessoas que estavam trabalhando no projeto permanecessem ali, ele teria que ser revisto.
Algum ponto específico?
Os movimentos sociais não querem rever o desenho do projeto, mas sim a concessão urbanística. Muito já foi derrubado naquela região. Alguns quarteirões estão hoje irreconhecíveis. É o pior momento para parar esse projeto porque se tornou um dos lugares mais deteriorados da cidade, com todos aqueles enormes espaços vazios. Ficou mais propício ao uso ilegal. É uma espécie de área abandonada. É como se tivesse havido uma guerra ali.
O que o Minhocão representa para a cidade?
Ai, meu Deus! É engraçado, o Minhocão ganhou um certo status –e dado pelas pessoas. Não é incrível? Já fui em dois domingos lá. Fiquei impressionada como as pessoas usam o Minhocão. Está provado que derrubá-lo não é mais algo tão simples, que pode estar indo contra a corrente.
Tem muita gente que é contra a demolição.
Muita gente. Ali criou-se uma vida. Demolir o Minhocão já não tem, para mim, o mesmo peso que teve 10, 15 anos atrás – quando eu achava que aquilo era um elemento corrosivo dentro da cidade. Ele ganhou status e é uma eloquente resposta que a população deu para a falta de espaço público.
Quer dizer que…
A gente entende mal o que o povo diz. As pessoas estão frequentando o Minhocão, mesmo com a falta de qualidade, mesmo sendo desagradável passear no asfalto, sem nenhuma vegetação. Tem mãe empurrando carrinho de bebê, crianças pedalando e pais montando piscinas para as crianças brincarem na água. Tudo ali em cima. A população se apropriou daquilo com mais facilidade do que se apropria de um lugar onde tem uma certa solenidade de projeto.
Qual a sua opinião sobre a reforma da Praça Roosevelt?
O projeto é interessante porque limpou, arrumou e tornou mais ameno o espaço. Agora, é preciso que ele seja apropriado pelos teatros que estão em volta. Mas temos a informação de que aconteceu justamente o contrário.
Na verdade, os teatros todos foram embora. É uma questão para ser vista com muito atenção, porque o projeto foi desenvolvido pensando nesses teatros. Ali, no meio daqueles escombros que era a praça, nasceu um dos movimentos culturais mais importante de São Paulo. E, justamente quando se arruma aquele espaço, eles vão embora. Tem alguma coisa de errado nisso.
O projeto deu errado?
A praça, na minha opinião, tem mais características de praça de bairro do que de praça de área central. Ela poderia ser muito mais iluminada. Fica sombria à noite. Tem que se pensar na valorização do entorno dela.
Há o que fazer?
Tudo depende de como as pessoas vão se apropriar da praça. Do contrário, ela ficará abandonada. / THAIS ARBEX