“20 mil habitações no centro expandido. É possível? Parte 1” – João Sette Whitaker
mar 04, 2013 Por rnsp-admin Em Histórico
Por João Sette Whitaker
Fernando Haddad e Geraldo Alckmin anunciaram, semana passada, uma Parceria Público Privada (PPP) que, associando a iniciativa privada aos governos estadual e municipal, será supostamente capaz de produzir, em menos de dois anos, 20 mil moradias no centro expandido da capital paulistana, destinadas "às famílias de trabalhadores da região central com renda de até cinco pisos salariais do Estado (R$ 755)".
A iniciativa merece atenção, e alguma reflexão, mais uma vez, um pouco longa para uma postagem de blog. Mas a importância do tema justifica o abuso. Vou entretanto dividir a postagem em duas partes. Comecemos por aspectos mais conceituais.
1. O centro da cidade: concentra a maior parte da oferta de emprego, esbanja uma atividade comercial formidável, mas sofre com o abandono de inúmeros prédios, que não cumprem sua função social. Paradoxalmente, um contingente considerável de moradores – muitos de renda baixa – gostaria de morar no centro, onde os custos de deslocamento para o trabalho são radicalmente reduzidos. O centro, para funcionar, precisa ter a atual vivacidade (embora as elites gostem de dizer que ele é "degradado"), em muito garantida por seu caráter popular, associada à um uso habitacional que lhe vida também a noite. Não há sentido uma cidade ter mais de 3 milhões de pessoas morando em assentamentos precários, e ao mesmo tempo milhares de edifícios vazios nas suas áreas centrais. Vale dizer que, em todo o Brasil, há cerca de 5 milhões de imóveis habitacionais vazios, para um déficit de moradias quase equivalente, de cerca de 6 milhões de unidades. Esses prédios ficam abandonados as vezes por causa de entraves jurídicos, outras por processos de herança mal resolvidos, mas muitas vezes por pura especulação dos proprietários, à espera de uma valorização imobiliária que lhes favoreça. Projetos elitistas (e inconstitucionais), como era o Nova Luz, felizmente paralisado, visavam tão somente alavancar uma fenomenal valorização, que iria servir ao mercado imobiliário, elitizar o centro e expulsar de lá, como sempre, os mais pobres (sobre o centro, ver texto neste blog, clicando aqui).
A notícia da nova política para o centro, nesse sentido, é louvável: alavancar o ocupação das centenas de imóveis vazios, dando-lhes novamente uso habitacional. Também é fundamental não negligenciar o caráter comercial do centro, valorizando a atividade existente em vez de expulsá-la, inventando novas "vocações" (elitistas) para o centro, como fazia o Nova Luz. Temos ali o maior comércio da varejo de computadores da América Latina, comércio de roupas, de ferramentas e equipamentos de todo tipo, de vestidos de noiva, e assim vai. Uma política para o centro deve promover a diversidade de usos e o dinamismo comercial, gerador de empregos e da dinâmica econômica. Na proposta apresentada, mesmo que ainda não tenha sido claramente explicada, ouviu-se que a ideia é promover a ocupação dos térreos dos prédios com comércio. É um ponto de partida entusiasmante. Ponto a favor.
A questão da moradia, que então ocuparia os andares superiores desses edifícios, é também fundamental, mas inspira cuidados: pois, como sabemos, as cidades brasileiras são segregadas (porque nossa sociedade – e sua elite -, é segregadora), verdadeiras máquinas de promover o Apartheid urbano. Geralmente, planos de urbanização atendem às demandas das camadas superiores, abrindo novas ofertas de imóveis para as classes médias e altas, e "fingem" não lembrar da massa de excluídos, aqueles que realmente precisam de moradia e que, como gosta de lembrar minha sempre professora Ermínia Maricato, vivem "no exílio da periferia". Pois bem, um projeto de "reocupação" do centro deve propiciar a diversidade social, pois ela é a garantia da cidade democrática. Não se trata de produzir um gueto de habitações sociais que seriam tão estigmatizadas quanto se estivessem na periferia, mas também não se trata de fazer, como queria o Nova Luz, um centro só para os ricos. Nessa equação, a garantia de espaço para os mais pobres é do Poder Público, já que o mercado imobiliário dá muito bem conta da oferta de médio e alto padrão. Neste plano que se apresenta, a prioridade absoluta do Poder Público, deve ser a de produzir um número nunca antes visto de moradias para a baixa renda no centro, alavancando a atividade construtiva também do mercado imobiliário privado. As 20 mil habitações prometidas serão para quem? a Prefeitura e o Estado falam em quem ganha até cinco salários mínimos do Estado ( de R$ 755, acima do Salário Mínimo Federal). Há muita diferença entre quem ganha 150 Reais por mês e ocupa um prédio vazio no centro perto de seu trabalho precário, e quem ganha R$ 3.775, equivalentes aos 5 salários mínimos citados. Há a necessidade de se detalhar melhor a proposta, pois se ela atender 90% de pessoas com renda entre 4 e 5 salários, e apenas 10% entre 0 e 4, trata-se então de um plano para a classe média apenas, retirando-lhe seu caráter inovador e democrático. A questão está colocada, e tentaremos respondê-la na segunda parte desta postagem. Aguardem….
Resta saber os instrumentos que permitirão por em prática tal política. Neste caso, anuncia-se uma intervenção baseada em uma Parceria Público-Privada (PPP).
2. Sobre as PPPs: há uma enorme desconfiança sobre as PPPs, com certa razão. Em um país em que o poder privado sempre foi absoluto, instrumentalizando o próprio Estado para a proteção de seus interesses, toda "parceria" entre o público e o privado sofre da justa desconfiança de que, nesse jogo, não sobre muita coisa – para não dizer nada – que sirva ao interesse público. No âmbito urbanístico, as Operações Urbanas Consorciadas, aprovadas no Estatuto da Cidade, são o exemplo mais acabado de um instrumento que no fim serve apenas aos interesses privados. Por isso, quando o governos anuncia uma PPP para responder à questão habitacional, a desconfiança reina. Porém, como já escrevi certa vez com Erminia Maricato sobre as Operações Urbanas (clique aqui), a questão talvez não seja a PPP em si. Nas economias atuais, é de fato muito difícil pensar em algumas intervenções sem a participação mais ou menos intensa do setor privado. A questão central é saber até que ponto é possível fazer uma PPP que garanta resultados de interesse público e não privado, e até que ponto o governo é capaz de manter as rédeas do processo para que isso ocorra. Neste caso, o governo parece garantir que isso é possível. Desde já me adianto que o desafio é grande, pois não se trata, como em outras PPPs, de conceder o direito de manutenção e exploração de algum serviço público (estradas, aeroportos), em que o resultado em benefício da sociedade é mais palpável e fácil de avaliar (compare-se, por exemplo, as concessões de estrada e pedágios nos governo estadual de SP e no federal). Aqui, estamos falando naquilo que é mais sagrado para a sociedade patrimonialista brasileira: a posse da terra, a propriedade urbana e a apropriação da cidade.
A montagem (pouco explicada ainda) que os governos municipal e estadual propõem para a nova política para o centro permitirá um manejo público (voltado à garantia do interesse público) do uso e ocupação do solo? Eis a grande questão, que me proponho a continuar discutindo no próximo post, para não tornar a leitura cansativa.
Até lá!