“Uma semana auspiciosa para a gestão de Fernando Haddad” – Cidades Para Quem?

Ao propor uma discussão sobre política e cidade, este blog não se furtará a apontar aspectos que considere problemáticos, com a legitimidade de quem apoiou e fez ampla campanha pelo sucesso desta gestão. Por outro lado, quando há coisas boas, acho que elas devem ser ditas com clareza e festejadas. E esta semana ficará marcada positivamente na gestão do Prefeito Fernando Haddad.


Moradores de rua no Salão Nobre da São Francisco

Na segunda-feira, o prefeito fez um gesto de coragem e forte simbolismo: lotou o Salão Nobre da Faculdade de Direito da São Francisco com moradores de rua. Aqueles mesmo que dormem no Largo São Francisco e que são normalmente duramente enxotados daquele ambiente. Colocou para proteger o evento e seus convidados a Guarda Civil, que tem um histórico pouco enobrecedor no tratamento da população de rua. Uma indicação de respeito, de que a prefeitura irá dar à essa população marginalizada ao extremo a atenção que ela merece. O evento serviu para anunciar, justamente, a criação do Comitê Intersetorial da Política da População em Situação de Rua, que irá elaborar subsídios para o Plano Municipal da Política da População em Situação de Rua. Além disso, anunciou uma parceria com o SENAI, para oferecer cursos profissionalizantes específicos, com perspectiva de inserção no mercado de trabalho, e com uma meta de beneficiar 2000 pessoas em 2013. 


Instalação do Conselho da Cidade

Na terça-feira, o Prefeito instalou o Conselho da Cidade. Um conselhão de caráter consultivo, que demonstra uma abertura ao diálogo da prefeitura, e uma disposição do prefeito em expor-se e dialogar sem restrições com a cidade que governa. Foram convidadas 137 pessoas, de fato muito representativas da diversidade da nossa cidade: de políticos a celebridades, representantes dos acadêmicos, dos estudantes, dos empresários, dos transsexuais, dos movimentos populares, do mercado imobiliário, e assim vai. A "bancada" dos urbanistas até que é numerosa, com uns oito representantes, eu inclusive. É óbvio que um conselho desses, que se reunirá 4 vezes ao ano, não conseguirá ter muita objetividade para apontar problemas e sugerir soluções. Porém, será um canal efetivo de difusão das políticas municipais em todos esses segmentos ali representados. Além disso, um conselho desses pode ser útil para o Prefeito, no sentido de servir de arena pública para a distensão de alguns conflitos que poderiam  de outro modo, estourar depois nas suas mãos. A cidade é o espaço de interesses muitas vezes antagônicos, conflitantes, sobretudo no que diz respeito à forma com que dela se faz uso. A cidade é um espaço em disputa. Naquele conselho estão representantes do mercado imobiliário e do movimento popular. Quem sabe se poderá trazer àquele conselho uma forma de ver a cidade mais respeitosa dos direitos de todos?


Evitando um novo Pinheirinho

Por coincidência  o assunto veio à tona logo na primeira reunião do Conselho. Em plena fala do prefeito, chegou a notícia da reintegração de posse de uma grande gleba vazia em São Mateus. Seguindo uma decisão judicial, como sempre tendenciosa para o lado do proprietário, a PM estava realizando a retirada de cerca de 700 famílias ali instaladas em barracos, alguns de alvenaria. É a clássica história: uma confusa situação de ocupação, com testemunhos de que o proprietário teria até incentivado a ocupação (clique aqui), prometendo depois cobrar 4 mil por cada lote ocupado (teria posteriormente subido o preço para 7 mil, gerando desavenças com os moradores). Um terreno com nada menos que 130 mil m², que descumpria a função social da propriedade por estar vazio em plena cidade, à espera de algum empreendimento imobiliário muito lucrativo. Na véspera, após audiência no fórum de Itaquera, em que a prefeitura tentou transformar a área em terreno de caráter social, o juiz, ainda assim, havia determinado a desocupação imediata do terreno.

O caso foi fundamental para que se entenda uma coisa: a prefeitura, nesses casos, tem sim todo o poder para interferir e interromper esse tipo de violência. O que se precisa é de vontade política. O que não houve no caso Pinheirinho, em São José dos Campos, quando prefeitura e governo se isentaram da questão, jogando a "culpa" do ocorrido ao judiciário. Aqui, e esse é a boa notícia, a atitude foi completamente diferente, o que mostra que o título "Pinheirinho 2" dado pela imprensa ao episódio foi bastante maldoso. Porque, no nosso caso, a prefeitura interviu, e de forma enérgica. Diante de uma primeira posição intransigente do proprietário, o prefeito fez o que devia: ameaçou decretar o terreno de interesse social, visando sua desapropriação. A partir daí, a negociação avançou, e a prefeitura conseguiu suspender a reintegração de posse.

Não bastasse isso, a Secretária Municipal de Planejamento, Leda Paulani, deu importante e corajosa entrevista à Folha, em que reitera o compromisso da gestão em fazer valer o direito da propriedade e interceder para que casos como esse não ocorram (leia aqui). Suas afirmações são contundentes: "As sentenças judiciais têm sido pautadas, como sempre, pelos interesses privados e por uma leitura estrita dos direitos de propriedade". (…) "A sociedade brasileira é patrimonial. O peso da propriedade é indiscutível, cláusula pétrea da sociabilidade brasileira". Continua resumindo muito bem o que significa a função social da propriedade urbana: "O prefeito prometeu as creches. Fizemos um força tarefa para encontrar terrenos. É um sufoco para conseguir terreno onde se precisa e que não se seja esfolado para comprar. Tudo é um absurdo de caro. Um sujeito tem um terreno desse tamanho, não faz nada com ele. Se não se aplicar aí a função social da propriedade, vai aplicar onde?"

Plano de Metas

A primeira reunião do Conselho da Cidade serviu para apresentar o Plano de Metas do governo. Esta é a segunda vez que um prefeito deve fazer isso, após a aprovação na Câmara de uma lei nesse sentido, inspirada em proposição da Rede Nossa São Paulo (clique aqui para conhecer). O plano apresentou 100 metas, para serem cumpridas até o fim da gestão. Elas se agrupam em 3 eixos temáticos: 1) compromissos com os direitos sociais e civis, 2) desenvolvimento econômico sustentável com redução das desigualdades; e 3) gestão descentralizada, participativa e transparente. Deles se desdobram 21 objetivos, e para cada um mais um bom número de metas.

De forma geral, as metas estão bem colocadas, com algumas fundamentais, como a criação dos Conselhos de Representantes nas 32 subprefeituras, sem o que a cidade será sempre ingovernável. Evidentemente, a eleição direta para os subprefeitos ainda não aparece, mas esse talvez seja mesmo um passo posterior, pois demandará negociações para além de uma gestão. Provavelmente muitas dessas metas não serão cumpridas, mas isso não é uma questão essencial. O que importa aqui é o caminho que essas metas indicam, a postura política que elas representam. E, nesse sentido, há dois aspectos muito interessantes: primeiro, todos as metas elencadas são associadas à uma articulação territorial. Ou seja, compreende-se um aspecto essencial da gestão urbana: o de que ela não está nunca dissociada do território  que é nele que, sempre, a política se efetivará, para o bem ou para o mal. O segundo aspecto é que, ao analisar essa articulação territorial, assim como o conjunto das metas, se lê uma clara intenção de priorizar as questões sociais e os territórios vulneráveis. Como já venho escrevendo há muito tempo, assim como bom número de urbanistas de esquerda, a solução da desigualdade urbana no Brasil só existirá no dia em que houver uma drástica inversão dos investimentos públicos, não mais nos territórios privilegiados da cidade dos ricos, mas nos territórios esquecidos dos pobres. A Leda Paulani colocou muito bem em sua entrevista: "Há duas cidades dentro de São Paulo: uma cidade dos direitos, da democracia, da cidadania, da vida material minimamente organizada, e outra meio da barbárie". Essa cidade dos direitos é, como mostrou Flávio Villaça há anos, invariavelmente a que recebe a enorme parte dos investimentos públicos: pontes, túneis, vias expressas, asfalto, etc. Um Plano de Metas que, mesmo que de forma discreta, comece a mudar a prioridade desses investimentos (muito embora ainda tenhamos um "Arco do Futuro" inserido nas metas…mas essa é outra s discussão – ver aqui), é um sinal dos mais positivos.


Conferência da Cidade

Para completar uma semana tão inspirada, na quarta definiu-se, sob a  coordenação da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano, a Comissão Preparatória para a 6ª Conferência Municipal da Cidade de São Paulo, da qual faço parte como representante das entidades acadêmicas. As conferências municipais são parte de um sistema vertical de instâncias participativas proposto pelo Ministério das Cidades e o Conselho Nacional de Cidades. Preparam as Conferências Estaduais, que por sua vez subsidiarão a Conferência Nacional das Cidades, que ocorre a cada três anos, e acontecerá em novembro, com um tema inspirador: "Quem muda a cidade somos nós: Reforma Urbana Já!". As conferências têm a participação de todas as instâncias dos poderes executivos e legislativo, das subprefeituras, dos diferentes segmentos da sociedade civil, e uma forte participação dos movimentos populares. A reunião de instalação da 6ª Conferência Municipal, ocorrida na quarta, viu um plenário lotado pelos movimentos populares.

Vamos agora torcer para que esta semana sirva de inspiração para o enorme desafio que a gestão de Fernando Haddad tem pela frente.

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