Após o fim oficial do governo ditatorial de 1964, os brasileiros sonharam com avanços democráticos. Embora a sociedade continue desigual e injusta, a Carta de 1988 abre sendas para avanços institucionais.
Apesar do palimpsesto incoerente em que foi transformada, devido às emendas constitucionais, lateja na Constituição a ideia de autonomia a ser obtida na ordem federativa, dos municípios aos Estados. Nas universidades a tese não vigora, pois ainda são atreladas ao Executivo.
O Ministério Público foi o que mais avançou na conquista da autonomia responsável. Graças a ele, quem paga impostos acredita ser possível conduzir ímprobos aos tribunais, fato praticamente inédito em 500 anos de história política.
As esperanças depositadas na democracia trouxeram resultados importantes, tanto na legislação quanto no combate ao conúbio entre público e privado.
A lei de improbidade administrativa obriga os que prejudicam os cofres oficiais a prestar contas aos juízes, recebendo punições significativas. A Lei da Ficha Limpa ajuda a filtrar as águas partidárias e afasta notórios aproveitadores da riqueza pública. A lei que define a transparência nas contas, mesmo com o boicote de muitos setores do poder, aprimora a vida política.
A Comissão da Verdade, apesar dos opositores e dos impacientes, faz um trabalho sereno de análise factual. Se os campos ideológicos opostos (as esquerdas e as direitas) permitirem, dela teremos bons resultados em 2014.
Apesar dos óbices, o Brasil segue de maneira lenta rumo à democracia social e política. Mas não é permitido, para quem estuda os atos dos partidos e líderes parlamentares, imaginar horizontes límpidos no presente e no futuro.
A PEC 37, verdadeiro golpe na autonomia do Ministério Público (pois pretende dele arrancar o direito de investigação) foi seguida pelo projeto de lei que torna letra morta a legislação contra a improbidade administrativa, além de ameaçar os promotores públicos. Segue no STF o recurso trazido pelo acusado da morte de Celso Daniel, exigindo o fim das investigações conduzidas pelo Ministério Público.
Décadas de combate aos corruptos correm o risco de acabar em decepção das pessoas retas, com a vitória da impunidade contra a ética, do arbítrio contra a democracia. É bom recordar que, até 1988, com pequenos intervalos, o país não passou de uma federação oligárquica.
Durante as ditaduras Vargas e a civil-militar de 1964, os barões regionais se fortaleceram. O golpe de 64, feito com o slogan da caça à corrupção, abrigou nos parlamentos regionais e nacional notórios ímprobos que jamais prestaram contas à Justiça nacional e internacional.
Donos de regiões tiveram vez na elaboração da Carta de 1988, pois não foi convocada, por "realismo", uma Assembleia Nacional Constituinte. Os que apoiaram a ditadura permaneceram (alguns permanecem) no Congresso, tudo fazendo para que a essência da constituição –a autonomia institucional– seja aniquilada. Eles desejam que o Estado brasileiro retorne ao "status quo" anterior à democracia.
A PEC 37 e os projetos de lei que ameaçam a autonomia do Ministério Público entram na empresa reacionária, inimiga da ética política. Tais iniciativas favorecem a dissimulação política, impedem a marcha rumo à igualdade perante a lei.
Cabe à cidadania livre se levantar contra os que desejam o império do arbítrio, negando apoio à PEC 37 e suas congêneres legais. Quem, no Congresso, tem algum respeito por si mesmo e pela ética erga a voz e o voto contra outro golpe de Estado, conduzido por adversários da República.
ROBERTO ROMANO, 67, professor titular de ética na Universidade Estadual de Campinas, é autor de "Brasil, Igreja contra Estado" (Kayrós, 1979) e "Os Nomes do Ódio" (Perspectiva, 2009), entre outros