“Mudança Radical”, Valor

Por Gleise de Castro, para o Valor, de São Paulo
 
A crise da mobilidade urbana, um dos alvos dos protestos nas ruas do país nas últimas semanas, ultrapassou os limites das grandes metrópoles e já atinge cidades brasileiras de médio porte. Congestionamentos cada vez maiores afetam a qualidade de vida dos cidadãos, aumentam o estresse urbano, causam danos à saúde, ao meio ambiente e à produtividade.
 
A conta é alta. Em 2010, a Secretaria de Estado dos Transportes Metropolitanos estimou que as perdas financeiras com engarrafamentos, acidentes de trânsito e poluição na cidade de São Paulo chegavam a R$ 4,1 bilhões por ano, enquanto o Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP) calculou perdas diárias de R$ 11 milhões com tempo e consumo de combustível nos congestionamentos, chegando a R$ 3,3 bilhões em um ano. Levantamento do Ibope e da Rede Nossa São Paulo mostrou que 61% dos paulistanos dedicavam entre mais de uma hora a até três horas nos trajetos para o trabalho e a escola em 2012. A mesma pesquisa indica que três em cada quatro paulistanos gastam entre uma e quatro horas por dia em seus deslocamentos.
 
A luz no fim do túnel é que agora parece existir um consenso entre empresários, gestores públicos, urbanistas e especialistas sobre a necessidade de uma mudança radical. Todos propõem a inversão de uma lógica que vem da década de 1950, quando o processo de urbanização se intensificou e se associou a uma política que privilegiou a indústria automobilística: o transporte público, e não o individual, é que deve ocupar mais espaço nas ruas.
 
A crise foi acelerada pela política recente de incentivo à compra de veículos, com isenção tributária e facilidade de crédito. Entre 2003 e 2012, foram licenciados 3,8 milhões de novos veículos no país, elevando a frota nacional para 34,655 milhões, a sétima maior do mundo, segundo a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea). Os preços controlados dos combustíveis nos últimos anos completaram o conjunto de estímulos ao uso de automóveis.
 
"Há toda uma política de valorizar o transporte individual e de desvalorizar o público", diz Carlos Henrique Ribeiro de Carvalho, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), vinculado à Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. Tanto que, nos últimos 15 anos, afirma ele, as vendas de motos e automóveis subiram 9% a 10% ao ano, mais do que duas vezes o crescimento do Produto Interno Bruto. No transporte público, com exceção de São Paulo, a demanda de passageiros por ônibus caiu 20% a 25% em relação a meados da década de 1990.
 
O recuo na demanda pelos ônibus resulta da combinação de estímulo ao transporte individual e aumento das tarifas decorrente tanto da alta dos preços de alguns dos principais itens que compõem a estrutura de custo do transporte público, como salários e óleo diesel, quanto da queda de produtividade dos sistemas de transporte. "Os custos aumentaram e o número de passageiros diminuiu, elevando o custo unitário", afirma Carvalho.
 
São Paulo é exceção. A cidade aumentou a oferta de metrô, o que, com o uso do bilhete único, acabou puxando também o de ônibus. O metrô e os trens da CPTM respondem por cerca de 30% da demanda de passageiros na cidade, enquanto no restante do país o transporte metro-ferroviário fica abaixo de 5%, segundo Carvalho. Não significa que as condições de transporte na cidade tenham melhorado. "Nos últimos 18 anos, São Paulo criou estações de trem e metrô, mas o tempo gasto nos deslocamentos vem aumentando. É como enxugar gelo. A demanda reprimida é tão grande que quando há uma expansão do transporte, ela já começa saturada", diz Rafael Pereira, também pesquisador do Ipea.
 
Segundo o arquiteto e urbanista Nazareno Stanislau Affonso, coordenador do Movimento Nacional pelo Direito do Transporte Público de Qualidade para Todos e da Associação Nacional dos Transportes Públicos (ANTP) de Brasília, durante um ano, as pessoas ficam o equivalente a 40 dias dentro de carros ou ônibus na cidade de São Paulo.
 
A urbanização acelerada também contribuiu para o caos no trânsito. Cerca de 85% da população brasileira hoje vive em cidades, ante 44,7% na década de 1960. "Ao lado de problemas como saneamento, habitação, educação e saúde, a mobilidade tornou-se também um problema para cidades médias", diz José Geraldo Baião, presidente da Associação dos Engenheiros e Arquitetos de Metrô (Aeamesp).
 
Para Luiz Carlos Nespoli Mantovani, superintendente da Associação Nacional dos Transportes Públicos (ANTP), o problema é que as cidades se esparramaram e afastaram a população mais pobre das regiões de emprego. "Criou-se um sistema de transporte muito extenso e radial concêntrico, ou seja, que vai se desenvolvendo a partir do centro para a periferia e cujos eixos são as antigas estradas", diz Mantovani. Só agora discutem-se estímulos à concentração das cidades. "O ideal é morar perto do trabalho e o desejável é ter todo tipo de gente morando no mesmo lugar, em edificações de uso misto", diz o superintendente da ANTP, que aponta como exemplo o paulistano Conjunto Nacional, na Avenida Paulista.
 
Outra nova ideia em discussão é fazer com que os corredores de transporte existentes sejam indutores de mudança de ocupação de suas margens, para que as cidades fiquem mais adensadas e se contenham dentro de seus limites. "Isso aumenta o embarque e o desembarque ao longo do sistema de ônibus, ou de BRTs, que se tornam mais eficientes. Se o veículo lota já no início e segue cheio até o final, o custo aumenta e o sistema se torna menos eficiente", diz Mantovani. Ao lado disso, deve ser construída uma rede que permita que o passageiro possa mudar de rumo ao longo do percurso.
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