Sem chamada pública durante a gestão Kassab, seleção de entidades, pautada por proximidade política e não pela demanda, provocou desigualdades. Prefeitura quer também ampliação das vagas oferecidas
Nicolau Soares e Sarah Fernandes – Rede Brasil Atual
São Paulo – A Prefeitura de São Paulo publicou hoje (29) no Diário Oficial do Município edital para seleção de entidades capacitadas a administrar creches. Trata-se da oficialização de uma medida vista como fundamental para dar fim à política que vigorou na gestão de Gilberto Kassab (PSD), quando a contratação se deu sem concorrência, em processo de escolha que abria espaço à troca de favores políticos.
O edital publicado hoje visa a firmar critérios que serão tomados em conta na seleção das entidades capacitadas. Organizações que atuem na área de educação há pelo menos doze meses estão habilitadas, desde que obedeçam a uma série de outras exigências, como a de não ter remuneração para diretores e integrantes de conselhos.
Também hoje a Secretaria Municipal de Educação abriu chamamento às entidades já credenciadas para que ofereçam propostas de ampliação do atendimento. Neste caso, o aumento do número de vagas tem de se dar por oferecimento de maior espaço físico, seja por reforma, seja por abertura de novas unidades, para dar conta das crianças de zero a três anos que estão na fila das creches. Segundo a prefeitura, 46% das 564 mil crianças nesta faixa etária estão matriculadas, mas, entre a população de baixa renda, o nível cai a 22%. Por isso, o oferecimento de novas vagas será feito com prioridade para as regiões mais afastadas do centro.
Especialistas em educação infantil avaliam que a falta de um edital e de uma chamada pública para selecionar as organizações sociais (OSs) que atuam na educação infantil de forma conveniada levou a uma desigualdade na oferta das vagas, que ficaram concentradas no centro expandido. A suspeita é que, sem critérios claros, as entidades que firmaram os contratos foram aquelas com mais proximidade política com a prefeitura e não a das regiões de maior demanda.
“Não temos dados objetivos para afirmar que houve favorecimento político. O que temos é um diagnóstico: houve uma expansão que pode ser considerada voluntarista. Dependia da vontade das instituições privadas manifestar interesse por conveniar uma creche. Em nenhum momento houve um chamamento público ou um edital convocando todas as instituições a participarem”, afirma o coordenador do Programa de Ação na Justiça da ONG Ação Educativa, Salomão Ximenes. “Não existe um critério objetivo e isso dá margem para esses questionamentos.”
Hoje, o processo de definição dos convênios é realizado dentro das Diretorias Regionais de Ensino (DREs). É a elas que as entidades apresentam seus pedidos e são também elas que avaliam se as exigências da Secretaria de Educação, estabelecidas na Portaria 3477, de 2011, foram cumpridas. Dessa forma, a abertura de novas creches obedece mais ao nível de articulação das entidades que buscam os convênios do que às reais demanda de cada região, criando distorções.
Pela legislação até agora em vigor, as instituições candidatas deveriam cumprir oito pré-requisitos, entre eles não ter fins lucrativos, ter pelo menos três anos de existência e oferecer 100% de gratuidade no serviço, além de apresentar uma série de documentos exigidos. Ficava a cargo das DREs, em 30 dias, avaliar a pertinência do convênio e a veracidade das informações.
“Queremos afastar a ideia de que os convênios são fechados por favores políticos. Vamos fazer um mapa e estabelecer a prioridade entre as regiões de acordo com a demanda”, afirmou o secretário de Educação, Cesar Callegari, no último dia 14, quando manifestou intenção de mudar as regras no setor.
Segundo ele, o novo formato ajudará a direcionar as creches conveniadas para as regiões com maior demanda. Além disso, o processo poderá ser mais facilmente fiscalizado por tribunais de contas e outros órgãos.
“Isso é elogiável. Esse regime de conveniamento levou a uma concentração da oferta na cidade”, diz Ximenes. “A zona sul, por exemplo, tem uma taxa de atendimento muito menor que a média municipal e muito menor inclusive que a zona leste, porque há menos entidades. Deveria ter havido uma intencionalidade da prefeitura em construir instituições e promover conveniamentos de qualidade naquela região.”
CENTRO E PERIFERIA
O estudo Educação e Desigualdades na Cidade de São Paulo, lançado este mês pela Ação Educativa, confirma a desigualdade: há um abismo na taxa de frequência líquida nas creches – que relaciona o número de crianças de 0 a 3 anos nos distritos e o total de vagas ofertadas – entre o centro e as regiões mais afastadas da cidade. Em julho, o déficit de vagas na cidade chegou a 127,4 mil, segundo dados da Secretaria Municipal de Educação.
As taxas de frequência dos distritos periféricos de São Lucas (9,5%), Tremembé (12,5%), Jardim Ângela (12,3%), São Domingos (13,3%), Marsilac (14,1%) e Vila Andrade (14,3%) os colocam entre os últimos lugares no ranking de atendimento da demanda. Já as regiões mais centralizadas ou mais ricas concentram as maiores taxas de atendimento, como Pinheiros (71,8%), Barra Funda (58,6%), Pari (57,9%), Santana (55,7%) Vila Mariana (53,4%) e Morumbi (52,6%).
“A expansão da rede de educação infantil se deu prioritariamente pelo conveniamento e isso foi um problema no aspecto de qualidade, planejamento e no atendimento dessas crianças nas áreas mais vulneráveis”, afirmou o promotor público João Paulo Fastinoni, do Grupo de Atuação Especial em Educação. “A prefeitura argumenta que não é possível substituir toda a rede conveniada por direta imediatamente. Então, se o conveniamento será mantido, que sejam criados critérios de transparência, de qualidade e de concorrência para que essas desigualdades sejam equacionadas e para evitar algum tipo de favorecimento político.”
No final de 2012, o Ministério Público do Trabalho proibiu a prefeitura de renovar ou firmar novos contratos com organizações sociais que oferecem educação infantil conveniada. O órgão apontou que a gestão municipal, então comandada por Gilberto Kassab, não fazia o monitoramento adequado, o que abriu brechas para irregularidades trabalhistas. As investigações, realizadas após oito denúncias, constataram atrasos no salário, não pagamento de horas extras e desvio de função dos educadores, que, em alguns casos, chegavam a ser responsáveis também pela faxina.
“Nesse mundo dos convênios é sempre bom salientar que há instituições muito sérias, com trabalho de qualidade”, lembra a coordenadora da Ação Educativa, Denise Carreira. “É preciso um diagnóstico da situação dos convênios na cidade de São Paulo, que valorize as boas experiências, como uma referência para a educação pública, mas que também identifique as instituições que não têm condições de operar e que muitas vezes, sim, obtiveram convênios em decorrência de vínculos políticos com determinadas autoridades.”
A falta de critérios nos conveniamentos provoca também uma desigualdade interna na rede. Isso porque as entidades com mais dinheiro conseguem bancar mais reformas nos prédios, comprar materiais e pagar mais cursos para os educadores, ao contrário das organizações mais pobres.
“Em certos casos, as conveniadas são consideradas particulares, e não recebem, por exemplo, formação da Secretaria Municipal. As entidades grandes conseguem suprir, mas as pequenas, as comunitárias, não. O mesmo vale para a manutenção do prédio. Uma parte do valor dos convênios pode ser usada para isso, mas tem um limite”, avalia a coordenadora do Instituto Avisa Lá, Cisele Ortiz.
“Essa divisão precisa ficar mais clara. É um serviço que a cidade precisa, que agora vai passar por um chamamento público, um processo para ver se entidade tem condições de prestar o serviço. Mas na periferia estão as entidades mais pobres, que vão precisar de mais apoios, como um investimento inicial na adequação de espaço físico, por exemplo”, avalia.