“A vinda de médicos cubanos ao Brasil é irregular?” – Folha de S.Paulo

A vinda de médicos cubanos ao Brasil para trabalhar no Sistema Único de Saúde tem causado polêmica, e a chegada dos primeiros profissionais nesta semana foi motivo até de vaia.
 
"Não é admissível que o Estado brasileiro –signatário de diversos tratados internacionais para a tutela dos direitos humanos, inclusive para a erradicação do trabalho escravo– possibilite a contratação de estrangeiros em situações precárias de terceirização, com cerceamento de direitos individuais e coletivos e com a retenção da maior parte dos recursos recebidos pelo governo cubano. As contratações têm que ser pessoais e os salários, pagos a quem presta o serviço", diz Carlos Vital Tavares Corrêa Lima, 1º vice-presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM).
 
O médico David Oliveira de Souza, que atuou como diretor médico no Médicos sem Fronteiras no Brasil, avalia que a suposta exploração de seu trabalho não procede. "Falou-se até em trabalho escravo. A Organização Pan-americana de Saúde (Opas) com um século de experiência, seria cúmplice, já que assinou termo de cooperação com o governo brasileiro. Seus rostos [dos cubanos] sorridentes nos aeroportos negam com veemência essas hipóteses."
 
Confira as opiniões:
 
 
"Não" 
 
David Oliveira de Souza: Carta aos médicos cubanos
 
Bem-vindos, médicos cubanos. Vocês serão muito importantes para o Brasil. A falta de médicos em áreas remotas e periféricas tem deixado nossa população em situação difícil. Não se preocupem com a hostilidade de parte de nossos colegas. Ela será amplamente compensada pela acolhida calorosa nas comunidades das quais vocês vieram cuidar.
 
A sua chegada responde a um imperativo humanitário que não pode esperar. Em Sergipe, por exemplo, o menor Estado do Brasil, é fácil se deslocar da capital para o interior. Ainda assim, há centenas de postos de trabalho ociosos, mesmo em unidades de saúde equipadas e em boas condições.
 
Caros colegas de Cuba, é correto que nós médicos brasileiros lutemos por carreira de Estado, melhor estrutura de trabalho e mais financiamento para a saúde. É compreensível que muitos optemos por viver em grandes centros urbanos, e não em áreas rurais sem os mesmos atrativos. É aceitável que parte de nós não deseje transitar nas periferias inseguras e sem saneamento. O que não é justo é tentar impedir que vocês e outros colegas brasileiros que podem e desejam cuidar dessas pessoas façam isso. Essa postura nos diminui como corporação, causa vergonha e enfraquece nossas bandeiras junto à sociedade.
 
Talvez vocês já saibam que a principal causa de morte no Brasil são as doenças do aparelho circulatório. Temos um alto índice de internações hospitalares sensíveis à atenção primária, ou seja, que poderiam ter sido evitadas por um atendimento simples caso houvesse médico no posto de saúde.
 
Será bom vê-los diagnosticar apenas com estetoscópio, aparelho de pressão e exames básicos pais e mães de família hipertensos ou diabéticos e evitar, assim, que deixem seus filhos precocemente por derrame ou por infarto.
 
Será bom vê-los prevenindo a sífilis congênita, causa de graves sequelas em tantos bebês brasileiros somente porque suas mães não tiveram acesso a um médico que as tratasse com a secular penicilina.
 
Será bom ver o alívio que mães ribeirinhas ou das favelas sentirão ao vê-los prescrever antibiótico a seus filhos após diagnosticar uma pneumonia. O mesmo vale para gastroenterites, crises de asma e tantos diagnósticos para os quais bastam o médico e seu estetoscópio.
 
Não se pode negar que vocês também enfrentarão problemas. A chamada "atenção especializada de média complexidade" é um grande gargalo na saúde pública brasileira. A depender do local onde estejam, a dificuldade de se conseguir exame de imagem, cirurgias eletivas e consultas com especialista para casos mais complicados será imensa. Que isso não seja razão para desânimo. A presença de vocês criará demandas antes inexistentes e os governos serão mais pressionados pelas populações.
 
Para os que ainda não falam o português com perfeição, um consolo. Um médico paulistano ou carioca em certos locais do Nordeste também terá problemas. Vai precisar aprender que quando alguém diz que está com a testa "xuxando" tem, na verdade, uma dor de cabeça que pulsa. Ou ainda que um peito "afulviando" nada mais é do que asia. O útero é chamado de "dona do corpo". A dor em pontada é uma dor "abiudando" (derivado de abelha).
 
Já atuei como médico estrangeiro em diversos países e vi muitas vezes a expressão de alívio no rosto de pessoas para as quais eu não sabia dizer sequer bom dia –situação muito diferente da de vocês, já que nossos idiomas são similares.
 
O mais recente argumento contra sua vinda ao nosso país é o fato de que estariam sendo explorados. Falou-se até em trabalho escravo. A Organização Pan-americana de Saúde (Opas) com um século de experiência, seria cúmplice, já que assinou termo de cooperação com o governo brasileiro.
 
Seus rostos sorridentes nos aeroportos negam com veemência essas hipóteses. Em nome de nosso povo e de boa parte de nossos médicos, só me resta dizer com convicção: Um abraço fraterno e muchas gracias.
 
DAVID OLIVEIRA DE SOUZA, 38, é médico e professor do Instituto de Pesquisa do Hospital Sírio-Libanês. Foi diretor médico do Médicos Sem Fronteiras no Brasil (2007-2010)
 
 
 
"Sim"
 
Carlos Vital Tavares Corrêa Lima: O falso dilema dos médicos estrangeiros
 
A polêmica autorização para o trabalho de médicos com diplomas obtidos no exterior sem revalidação e comprovação de proficiência na língua portuguesa encerra falso dilema, embutido na medida provisória nº 621/2013, que subsidia o programa Mais Médicos.
 
A verdadeira questão resume-se à disponibilidade de médicos legalmente capacitados e habilitados.
 
Trata-se de estratégia criada para esconder a exposição da maior e mais carente parcela da população a profissionais sem qualificação comprovada, omitindo da sociedade o quadro de discriminação social estabelecido com a divisão do povo em suseranos e vassalos ou cidadãos de primeira e de segunda categoria.
 
O argumento coator imposto aos cidadãos das áreas de difícil provimento se limita à seguinte premissa: aceite esse meio médico ou parte de médico ou permaneça doente.
 
A interpretação jurídica de caráter sociológico da medida, que possa vir a conferir-lhe relevância social, aponta para um paradoxo moral e ético e configura-se como a hermenêutica do desamparo.
 
No Brasil, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (n.º 9394/1996) exige que os médicos estrangeiros revalidem seus diplomas em instituições públicas de ensino superior. Tal exigência é reforçada por outra regra ainda em vigor: a lei n.º 3.268/1957. Portanto, o projeto em fase de implementação resulta na contratação ilegal de brasileiros e estrangeiros com diploma de médico obtido em outros países.
 
Não obstante essa agressão legal no caso de todos os estrangeiros, ainda surge uma outra–igualmente revestida de gravidade– para os cubanos importados. As condições de trabalho previstas para esse grupo não atendem aos ditames constitucionais e implicam na aceitação –por meio de acordo bilateral– de práticas coercitivas dentro do território nacional, típicas de regimes totalitários ou ditatoriais.
 
Se existe dificuldade de acesso e de oferta da assistência às populações de municípios distantes ou das periferias das grandes cidades, não serão em medidas com essas características que o país encontrará as soluções adequadas.
 
Não é admissível que o Estado brasileiro –signatário de diversos tratados internacionais para a tutela dos direitos humanos, inclusive para a erradicação do trabalho escravo– possibilite a contratação de estrangeiros em situações precárias de terceirização, com cerceamento de direitos individuais e coletivos e com a retenção da maior parte dos recursos recebidos pelo governo cubano. As contratações têm que ser pessoais e os salários, pagos a quem presta o serviço.
 
As autoridades brasileiras não podem explorar o labor de milhares de pessoas desrespeitando as leis vigentes no país, em especial a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e o artigo 7º da Carta Magna (tutela dos direitos sociais trabalhistas).
 
Os gestores do nosso Sistema Único de Saúde (SUS) utilizam em larga escala o argumento de que os médicos estrangeiros não podem ser excluídos do programa Mais Médicos, sob pena de instaurar o caos na saúde pública. Dizem que inexistem médicos nativos em número suficiente e dispostos a trabalhar no interior. Com mecanismos de marketing, lançam a opinião pública contra qualquer posição divergente.
 
Essas premissas são falsas e apenas impedem um debate pautado por consistência e transparência. O Brasil, a dignidade e a saúde de seu povo, assim como a consideração aos seus médicos, valem mais do que uma eleição!
 
CARLOS VITAL TAVARES CORRÊA LIMA é primeiro vice-presidente do Conselho Federal de Medicina
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