José Roberto de Toledo, Lucas de Abreu Maia e Rodrigo Burgarelli, de O Estado de S.Paulo
Comparado ao tamanho dos rios amazônicos, o Tietê é um regato. Nas estatísticas, porém, é uma catarata de superlativos. Estudo inédito do Estadão Dados mostra que o Tietê e seus afluentes formam a bacia hidrográfica mais populosa, mais rica e mais poluída do Brasil. É também a de maior desenvolvimento humano do País.
A produção da bacia do Tietê soma R$ 1 trilhão por ano. A cada R$ 4 do PIB brasileiro em 2010, R$ 1 saiu do entorno do rio e de seus tributários. Às suas margens ou perto delas moram 30 milhões de pessoas, a maior população ribeirinha do País, com médias de 10,6 anos de estudo e 75,3 anos de vida.
O Rio Tietê – cujo dia é comemorado hoje – nasce acima dos mil metros de altitude, nas encostas da Serra do Mar, em Salesópolis, a leste da capital. Corre 1.136 quilômetros para o interior, por 73 municípios paulistas. Deságua no Rio Paraná, entre Itapura e Castilhos, 300 metros acima do nível do mar. São apenas 740 metros de desnível da nascente à foz, ou 1 metro de declive a cada quilômetro e meio de percurso, em média.
Mesmo assim, as quedas do Tietê são famosas desde antes dos bandeirantes. Uma das maiores cachoeiras era chamada pelos índios de utu-guaçu, ou salto grande. Acabou por batizar as cidades de Itu e Salto.
Para fugir desse trecho inicial tortuoso e cheio de corredeiras, a navegação rio abaixo entre os séculos 18 e 19 começava em Araritaguaba, atual Porto Feliz, com destino às minas de ouro de Cuiabá. Por só poderem ser feitas em parte do ano, no período de cheia do rio, as expedições eram chamadas de monções – como as navegações portuguesas pelo Índico.
As longas canoas eram escavadas em enormes troncos derrubados ao longo das margens do rio e seus afluentes, como o Piracicaba. Escavadas na madeira maciça, levavam mantimentos, ferramentas e escravos para as minas, e traziam ouro.
Hoje, a hidrovia Tietê-Paraná percorre 2,6 mil quilômetros e transporta 6 milhões de toneladas de cargas anualmente, entre insumos e grãos. Um comboio de seis barcaças carregadas tira 210 carretas das estradas, gastando um quarto do combustível e emitindo um terço da quantidade de carbono.
Na época das monções, as canoas demoravam semanas ou até meses para chegar ao Paraná. Entre outros motivos, porque tinham de ser carregadas por terra em varadouros como o do traiçoeiro salto do Avanhandava. O salto foi inundado nos anos 1980 pelo reservatório da usina de Nova Avanhandava.
Nenhum acidente natural resiste no trecho entre Conchas e a foz. Foi construída mais de uma dezena de barragens ao longo do maior rio paulista, para aproveitamento hidrelétrico. Em seu curso, o Tietê gera até 2 mil megawatts de energia.
Em Pereira Barreto, a cerca de 50 km da desembocadura, um canal desvia parte do Tietê para o Rio São José dos Dourados, que corre paralelo e na mesma direção. As águas canalizadas ao norte ajudam a girar as turbinas da hidrelétrica de Ilha Solteira, no Rio Paraná.
Desenvolvimento. O rio foi determinante na fundação da maior cidade do hemisfério sul e na ocupação do território ao seu redor. Nas últimas décadas o desenvolvimento se estendeu do alto ao baixo Tietê.
O IDH na sua bacia é 14% maior do que a média do Brasil. Porque a esperança de vida ao nascer é também mais alta: 75,3 anos. É bem diferente de 100 anos atrás, quando as margens e várzeas do Tietê eram evitadas pela população temerosa das enchentes e de doenças como a malária.
Na educação, a expectativa de anos de estudo na bacia do rio é 11% maior do que a média brasileira (9,5 anos). A desigualdade de renda é menor do que no resto do País. O índice de Gini ao longo do Tietê varia de 0,33 a 0,67 (quanto mais próximo de 1, mais desigual), mas, na média, esse valor é de apenas 0,44 – ou 27% menor do que a média do Brasil.
O desenvolvimento econômico e demográfico custou caro ao rio. A qualidade de suas águas, cristalinas em Salesópolis, torna-se apenas "boa" em Biritiba-Mirim, "razoável" em Mogi das Cruzes e "ruim" em Itaquaquecetuba.
Na confluência com o Rio Aricanduva, já em São Paulo, fica "péssima", e segue assim por mais 200 quilômetros, até o desemboque do Sorocaba, em Laranjal Paulista. A seguir vêm mais 130 quilômetros de água ruim. Ela só volta a ficar boa em Barra Bonita.
A degradação se deve ao despejo de efluentes industriais e de 595 bilhões de litros de esgoto doméstico não tratado todo ano no rio – 40% do total do Brasil. Só a capital é responsável por jogar 750 milhões de litros de esgoto em estado puro no Tietê diariamente.
Apesar disso, na maior parte de seu curso, o Tietê tem águas de boa qualidade. Em Araçatuba, ela vai parar nas torneiras. Em Penápolis, abriga clubes de pesca de pacus e tucunarés.
Nos últimos 30 quilômetros antes de chegar à foz, no Rio Paraná, as águas do Tietê voltam a ter a mesma excelência dos primeiros 40 quilômetros de seu curso. Com pouca ajuda, o rio mais poluído do Brasil se recupera e termina tão limpo quanto começou.
– Poluição cruza mais de 100 km no Estado
Prefeituras investem em recuperação, mas é difícil acabar com ‘mar’ de lixo e espuma
José Maria Tomazela, de Salto
"Parece neve, mas o cheiro é de esgoto", diz a estudante Jenifer Correa da Silva, de 13 anos, diante do mar de espuma que cobre o Rio Tietê logo abaixo da cachoeira de Salto, a 104 km de São Paulo.
Confiando na despoluição do rio, a prefeitura investiu na recuperação de antigos espaços turísticos, como a Ilha dos Amores e a centenária ponte pênsil, totalmente restaurada, e ainda instalou o Memorial do Rio Tietê para contar a história do principal rio paulista. "Faltou combinar com quem está rio acima, principalmente na Grande São Paulo, pois as águas chegam aqui tão carregadas de poluição que viram espuma", diz Gláucia Vecchi, monitora do memorial.
Ao longo dos 80 quilômetros entre Santana de Parnaíba e Porto Feliz, o rio continua tão poluído quanto há 20 anos, dizem os moradores. "A espuma até aumentou e tem dia que não dá para respirar", diz Monica Coelho, comerciante de Pirapora do Bom Jesus. Segundo ela, quando a Barragem do Rasgão libera água o manto branco cobre o rio. "Tem turista que até gosta, mas quem mora aqui não suporta mais."
O prefeito Gregório Rodrigues Maglio (PMDB) conta que, na década de 1980, quando havia passeios de barco no Tietê, a cidade recebia 10 mil turistas por fim de semana. "Hoje, o turismo está reduzido às romarias do Bom Jesus, mas não chega a um terço do que era." Maglio lidera um movimento para que as cidades atingidas pela poluição sejam indenizadas. "Pirapora deixou de crescer por causa da poluição."
O rio que passa quase morto em Pirapora do Bom Jesus agita-se nas corredeiras de Cabreúva e cria belos cenários ao cortar remanescentes de Mata Atlântica. "É o trecho mais bonito, mas não podemos explorar o turismo por causa da poluição", diz a secretária de Meio Ambiente, Rosemeire Rabelo Timporim. Na Jornada do Tietê, hoje, a cidade vai reafirmar a posição contra o projeto de instalação de pequenas centrais hidrelétricas nesse trecho do rio. O represamento, segundo Rosemeire, acabaria com as corredeiras, agravando a poluição.
A cidade de 42.301 habitantes trata 90% do esgoto. "Fizemos a lição de casa, mas estamos sendo castigados pela omissão dos outros", diz a secretária de Cabreúva.
O rio continua e passa por Salto. Lá, quando ocorrem enchentes, o campo de futebol da Associação Atlética Avenida fica coberto de lixo. O presidente do clube, João Wolf, de 74 anos, vê-se obrigado a contratar carregadeiras e caminhões para retirar toneladas de sujeira. "Ultimamente, estou mandando jogar de volta no rio, pois quem trouxe, que leve."
Menos sujo
De Salto a Porto Feliz, o rio corta belas paisagens e atrai muitas aves, mas ainda é possível ver plásticos pendurados nas margens. Depois de passar por Tietê, o rio que deu nome à cidade recebe as águas do Sorocaba e chega mais limpo a Laranjal Paulista.
Nesse trecho está prevista a construção de duas barragens para gerar energia e estender a navegação para além de Conchas. O projeto, em fase de licenciamento, pode dar novo impulso à economia da região, segundo os prefeitos.
O Tietê é navegável a partir do Terminal de Conchas. A hidrovia segue para Anhembi, onde começa o lago da hidrelétrica de Barra Bonita. A abundância de peixes garante a subsistência de pescadores. Mas o lago está assoreado. Um projeto visando ao afundamento da calha navegável está em estudo.
– Nova fase de projeto de despoluição atrasa 6 meses à espera de verba
Prevista inicialmente para terminar em 2015, a terceira etapa do Projeto Tietê deverá ser concluída apenas no ano seguinte, por causa do atraso de seis meses na liberação do financiamento. Para manter a meta de universalizar o tratamento de esgoto no rio até 2020, a quarta e última fase será antecipada e deve começar já no ano que vem.
"Os recursos do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) sofreram atraso e tivemos de encavalar as etapas", diz Carlos Eduardo Carrela, superintendente de projetos da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp), que é responsável pela despoluição do Rio Tietê.
Outra alteração é o valor total da terceira etapa, que prevê aumentar a coleta de esgoto em 300% e ampliar a quantidade de estações de tratamento de duas para cinco. Por causa de mudanças no projeto, o investimento nessa fase saltou de US$ 1,8 bilhão para US$ 2 bilhões.
Esgoto
O maior avanço em 2013 foi verificado em Barueri, onde há um ano praticamente não havia tratamento de esgoto. Hoje, segundo a Sabesp, um terço dos 87% que a cidade coleta já tem algum tratamento.
"Há três meses iniciaram em Barueri as obras para construir a maior estação de tratamento da América Latina, que vai tratar até 16 mil litros por segundo", diz Carrela. Apenas esta obra, segundo ele, terá custo de R$ 350 milhões.
A Sabesp já obteve o financiamento inicial de R$ 1,050 bilhão para iniciar, em 2014, a quarta e última fase. O edital, segundo a empresa, deverá ser lançado até o fim do ano. / BRUNO DEIRO