O governo federal está prestes a cometer um erro desnecessário: permitir que seja adiada a obrigatoriedade de todos carros fabricados no Brasil trazerem airbags frontais e freios ABS, itens de segurança cruciais para salvar vidas num trânsito marcado pela banalização do risco e da morte.
A regra dos 100% deveria valer a partir de 1º de janeiro de 2014. Em 2013, 60% dos carros já tiveram de sair da fábrica com estes equipamentos. Agora, uma convergência dos interesses de sindicalistas e montadoras, descrita em UOL Carros pelo líder dos Metalúrgicos do ABC (que nomeou a si e a Volkswagen e Fiat como partícipes em negociações paralelas com o governo), atuou para que, no ano que vem, a obrigatoriedade atinja 70%; em 2015, 80%. Todos os carros nacionais com airbags e ABS, só em 2016.
Os trabalhadores, segundo o sindicato, ganhariam mais dois anos de emprego na Volks, devido à sobrevida de Kombi e Gol G4 — modelos cuja produção seria encerrada no final deste ano por não poderem receber airbags e ABS.
Boa parte das maiores montadoras ligadas à Anfavea também não terá do que reclamar: durante mais dois longos anos, será possível oferecer modelos “pelados” ao consumidores de entrada e, especialmente, a frotistas — pessoas jurídicas cuja lógica é gastar o mínimo possível com os carros usados em sua rotina profissional. Nela, airbags e ABS são considerados tão supérfluos quanto ar-condicionado e direção hidráulica.
Fiat e Volks, citadas aqui apenas porque o foram pelo sindicalista do ABC, e sem desmentido, são bons exemplos.
Sem poder produzir coisas como Gol G4 e Mille, e tendo de encarecer à força os Palio Fire da vida, correm o risco de perder participação no mercado automotivo nacional. No acumulado do ano até o final de novembro, têm 21,54% e 18,68%, respectivamente. A General Motors é a terceira no país, com os 18,16% da Chevrolet. A disputa é acirrada, e ser “líder de vendas” é um fetiche marqueteiro quase irresistível (marqueteiro, sim, porque não implica necessariamente em liderança na lucratividade).
E o governo?
As palavras do ministro da Fazenda, Guido Mantega, a quem sobrou a tarefa de anunciar a má notícia, não deixam dúvida: a preocupação é macroeconômica.
Somada ao fim do desconto no IPI, a instalação dos equipamentos de segurança em todos os carros poderia levar a um reajuste de preços exatamente nos modelos mais acessíveis. O prejuízo em ano eleitoral seria amplo: sensação de perda do poder de compra, alguns décimos mais na inflação, eventual queda nas vendas de carros e consequente desaceleração da produção industrial — com reflexo na composição do PIB.
Até aí, nada de novo. O lamentável é que, até esta quarta-feira, 11 de dezembro de 2013, a presidente Dilma Rousseff e sua equipe pareciam destinadas a se consagrar como vencedoras na complexa gestão de nossa indústria automotiva.
O Inovar-Auto deu um norte ao setor e, aproveitando a percepção de que não há futuro que não passe pelo Brasil (comum no exterior, mais difusa aqui, mas 100% real), conseguiu trazer novas fábricas de veículos e partes ao país, com os óbvios benefícios sociais e também de qualificação da oferta — em questão de meses, soubemos que desejados modelos Audi, BMW e Mercedes-Benz serão nacionais.
A obrigatoriedade de dois itens de segurança automotivos há muito tidos como básicos nos mercados evoluídos (Estados Unidos, Europa, Japão) era parte desse processo mais amplo. Não só pelo ganho na proteção aos motoristas e passageiros que se aventuram nos campos de batalha a que chamamos ruas e estradas, mas também por mostrar que governo que é governo às vezes tem de contrariar interesses particulares em favor do bem público.
As resoluções do Conselho Nacional de Trânsito sobre airbags e ABS são de abril de 2009. Quase cinco anos foram concedidos às montadoras para que se preparassem; como não consta ter havido dificuldade para cumprir os 60% previstos para 2013, provavelmente era um prazo razoável. Até séries especiais de despedida a fósseis sobre rodas (Kombi Last Edition, à venda, e Grazie Mille, pronta) foram preparadas, com maldisfarçado orgulho.
Agora, a escassos 20 dias da data marcada para a obrigatoriedade total de airbags e ABS entrar em vigência, acontece algo que colegas jornalistas descreveram como “tapetão automotivo”: como o jogo estava jogado, recorreu-se a quem pode criar exceções às regras (ou regras de exceção).
A palavra final é da presidente Dilma Rousseff. Ela pode frear o retrocesso, não engatar a marcha à ré proposta por sindicato, montadoras e ministro, e acelerar novamente rumo à evolução de nossos carros, de nossa segurança — de nossa sociedade, em suma. Aguardemos.
Leia também: "Mantega quer adiar regra de segurança em veículos" – Folha de S.Paulo