Por Oded Grajew, coordenador geral da Rede Nossa São Paulo e do Programa Cidades Sustentáveis, para a Revista ESPM
Há 250 anos, Jean-Jacques Rousseau escreveu o Contrato Social, uma proposta de uma nova ordem f undada em conduta mora l e liberdade civil que estabelecia convenções buscando a concórdia entre as pessoas que vivem em sociedade. Rousseau foi um dos grandes filósofos do Iluminismo e o Contrato Social foi uma das obras que marcaram o ideário da Revolução Francesa. Tal acontecimento deu início à Idade Contemporânea ao abolir a servidão e os direitos feudais e proclamar os princípios universais de “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”, frase de autoria de Rousseau.
Hoje, no início do século 21, necessitamos claramente de um novo Contrato Social. Razões não nos faltam. Nós já destruímos quase a metade das grandes florestas, que são os pulmões do mundo, e muitas das mais importantes e extensas áreas verdes do planeta vivenciam um acelerado ritmo de destruição. Uma área maior que Bangladesh é destruída por madeireiras todos os anos. Também emitimos imensas quantidades de dióxido de carbono e de outros gases causadores de efeito estufa na atmosfera, iniciando assim um ciclo de aquecimento global e instabilidades climáticas. Nós causamos um gigantesco buraco na camada de ozônio. Por causa disso, os níveis de UV têm chegado a altos recordes, o que ameaça a vida de vários organismos.
Temos solapado a fertilidade do solo e sua capacidade de sustentar a vida: 65% da terra cultivada foram perdidos e 15% das terras do planeta estão em processo de desertificação. Soltamos dezenas de milhares de novos produtos químicos no ar, na terra e na água do planeta, muitos dos quais são tóxicos, por muitos anos, envenenando lentamente os processos de vida. Produzimos grandes quantidades de dejetos nucleares, que continuarão a ser perigosamente radioativos por muitas centenas de anos. Destruímos centenas de milhares de espécies de plantas e animais. Cerca de 50 mil espécies desaparecem todos os anos e, em sua maior parte, em decorrência de atividades humanas.
Produzimos uma sociedade planetária escandalosamente e crescentemente desigual: 1.195 bilionários valem, juntos, 4,4 trilhões de dólares, ou seja, mais ou menos o dobro da renda anual dos 50% mais pobres. Em termos de renda, o 1% dos mais ricos da humanidade recebe o mesmo que os 57% mais pobres.
Nossos gastos militares somam US$ 1,464 trilhão por ano (e crescem a cada ano), equivalentes a 66% da renda anual dos 50% mais pobres. Apesar disso, a criminalidade, os conflitos, as guerras e ameaças bélicas não param de atingir as populações de todos os continentes.
Há um sentimento quase generalizado na população mundial de que os governos estão a serviço de poderosos interesses econômicos que financiam suas campanhas eleitorais (os 1%), não representam mais os interesses coletivos e da maioria das pessoas (os 99%), e aplicam políticas que aceleram a desigualdade e a destruição do planeta, além de alimentarem os conflitos.
Os organismos internacionais são vistos e sentidos pela sociedade como organizações pouco democráticas que estão a serviço dos interesses de poucas e poderosas nações e da manutenção e aprofundamento do atual modelo danoso de desenvolvimento.
Pela primeira vez na história da humanidade, existe uma ameaça concreta à continuidade de nossa espécie. Essa ameaça só pode ser contornada pelo entendimento da gravidade da situação e pela convergência em torno de novos princípios, valores e prioridades que possam conseguir a aglutinação de forças políticas e sociais suficientemente amplas e fortes, capazes de evitar a degradação do planeta e da vida humana. Essa aglutinação deveria se formar em torno de um pacto, um novo Contrato Social para estabelecer novos compromissos éticos entre os cidadãos do mundo, novas formas de lidar com conflitos e choques de interesses, uma nova relação entre governos e sociedade, entre governos nacionais e um novo pacto “intergeracional ”.
Para se materializar, um novo Contrato Social deveria comprometer toda a sociedade, pessoas e organizações públicas e privadas com uma agenda pautada em cinco pontos essenciais.
O primeiro deles é promover e perseguir a construção de uma sociedade mais igualitária, definindo faixas mínimas de renda e patrimônio (que ofereçam uma qualidade de vida digna a todos), e máximas bastante próximas. Para dar uma ideia do potencial de uma distribuição de riqueza justa, a Organização das Nações Unidas (ONU) acaba de sugerir a criação de uma taxa anual de apenas 1% sobre as fortunas individuais de US$ 1 bilhão ou mais. Essa pequena taxa que não mudaria em nada o nível de vida dos bi lionários, representaria uma ajuda importante para os países mais pobres, estimada entre US$ 40 bi lhões e US$ 50 bi lhões por ano!
Ao terminar seu livro, Rousseau faz a seguinte observação: “O pacto fundamental, em vez de destruir a igualdade natural, substitui, ao contrário, por uma igualdade moral e legítima a desigualdade física que a natureza pode pôr entre os homens, fazendo com que estes, conquanto possam ser desiguais em força ou em talento, se tornem iguais por convenção e por direito”. A liás, foi o compromisso com uma maior igua ldade entre os cidadãos que levou os países escandinavos da condição de nações mais miseráveis da Europa para os primeiros lugares em qualquer classificação mundial sobre qualidade de vida.
Outra ação crucial é abolir todos os armamentos e gastos militares, colocar todos esses recursos a serviço da promoção da justiça social e acordar que nenhuma disputa entre pessoas, organizações e governos seja decidida pela violência e que nenhuma autoridade seja exercida pela força.
O terceiro item da agenda desse novo Contrato Social deve eliminar qualquer interferência do poder econômico nos processos eleitorais. A partir disso, todos os candidatos passam a ter à disposição os mesmos recursos financeiros para fazer suas campanhas.
Mais um ponto importante desse acordo a ser firmado: toda geração precisa se comprometer a deixar para a próxima um planeta com maior cobertura florestal, com mais recursos naturais, com menores emissões de gases causadores de efeito estufa, com um buraco menor na camada de ozônio, com uma maior superfície de terra cultivável, com uma menor quantidade de emissão de produtos químicos que envenenam o ar, a terra e a água do planeta, com a eliminação de dejetos nucleares e com o aumento da quantidade de espécies de plantas e animais.
Por último, todos os organismos internacionais devem objetivar como sua única missão perseguir o cumprimento de todos os compromissos acima citados.
Para aqueles que possam considerar essas propostas utópicas e irrealistas, que talvez não tenham a dimensão da necessidade e urgência de mudança de rumo, de um novo Contrato Social, vale a pena reler o comunicado que um grupo de 1,6 mil cientistas, incluindo mais de cem ganhadores do Prêmio Nobel, emitiram em 1992, o Warning to Humanity (de lá para cá, os indicadores ambientais e da desigualdade só pioraram):
“Não mais de uma ou poucas décadas nos restam antes que a oportunidade para prevenir os perigos que agora nos ameaçam seja perdida, e com isso perspectivas para a humanidade serão terrivelmente diminuídas […]. Uma nova ética se faz necessária — uma nova atitude para cumprir nossa responsabilidade de cuidar de nós mesmos e da Terra. Esta ética deve motivar um grande movimento e convencer líderes, governos e pessoas relutantes em
efetuar mudanças”.