Nenhum governo até hoje conseguiu colocar o interesse econômico e a saúde dos brasileiros acima do lucro da indústria farmacêutica
Por Oded Grajew, coordenador-geral da Rede Nossa São Paulo
Estima-se que os brasileiros gastem desnecessariamente cerca de R$ 13 bilhões por ano com medicamentos! Você certamente já se confrontou com a seguinte situação: foi a uma farmácia para comprar um certo número de pílulas receitadas por seu médico e teve que levar uma quantidade maior por causa da embalagem oferecida pelo fabricante.
Os remédios armazenados na casa das pessoas oferecem um risco à saúde da população: podem ser ingeridos por crianças ou reutilizados inadvertidamente numa outra ocasião com data de validade já vencida, provocando graves intoxicações. Além disso, são frequentes os episódios em que, por falta de recursos, muitos compram uma parte do medicamento prescrito e, ao primeiro sinal de melhora, interrompem o tratamento, provocando inevitáveis danos à saúde.
Justamente para evitar problemas como esses, os países desenvolvidos e muitos outros obrigam os fabricantes e as farmácias a venderem remédios fracionados, isto é, a comercializarem o número exato de pílulas receitadas. Se o paciente apresenta uma receita para tomar três doses de antibióticos diárias durante cinco dias, a farmácia lhe vende 15 comprimidos. Todas as multinacionais instaladas no Brasil agem dessa forma em muitos países, inclusive nos seus de origem.
Durante um ano, em 2003, fui assessor especial do ex-presidente Lula. Apresentei a ele a proposta de introduzir no Brasil a obrigatoriedade do remédio fracionado, mostrando as enormes vantagens econômicas e de saúde para os brasileiros.
Lula, então, me deu razão e chegou a citar as palavras de sua mulher, Marisa, que se queixava das inúmeras caixas de remédio não utilizadas guardadas no armário do banheiro. Depois disso, o fracionamento passou a ser facultativo, mas não obrigatório.
Ao deixar o governo e reassumir a presidência do Instituto Ethos, tentei levar adiante a campanha pela introdução do remédio fracionado no Brasil. A indústria farmacêutica reagiu violentamente ameaçando retirar todos os fabricantes de remédios do quadro associativo do Ethos. Sugeri que fizéssemos uma coletiva de imprensa explicando os motivos dessa saída.
Em seguida, telefonei para o presidente da fundação Novartis na Suíça relatando o caso e perguntando se o discurso da responsabilidade social da empresa era realmente sério –isso porque a Novartis e outras multinacionais oferecem remédios fracionados em outros países, mas não o fazem no Brasil.
As ameaças contra o Instituto Ethos cessaram, mas o forte, rico e poderoso lobby da indústria farmacêutica contribuiu com mais de R$ 12 milhões nas eleições de 2010 e conseguiu impedir, até o momento, a obrigatoriedade do remédio fracionado no Brasil.
Nenhum dos governos até agora conseguiu enfrentar esse desafio de colocar o interesse econômico e a saúde dos brasileiros acima do lucro da indústria farmacêutica brasileira –que, aliás, é um dos maiores do mundo. Espero que este artigo sensibilize o governo e a sociedade para agirem contra esse crime hediondo que atinge diretamente o bolso e a saúde dos brasileiros.
Artigo publicado originalmente no jornal Folha de S. Paulo