Por Daniele Madureira, André Guilherme Vieira e Letícia Casado do jornal Valor Econômico
O novo Plano Diretor da cidade de São Paulo – primeira resposta política às manifestações de junho de 2013 que reivindicaram melhor mobilidade urbana na metrópole – é insuficiente para atender o direito da população de ir e vir com qualidade. Este direito está vinculado à moradia: enquanto não for definida uma nova política fundiária que imponha limites à especulação imobiliária para valorizar a função social do imóvel, a maioria das pessoas continuará morando longe do trabalho e o transporte público continuará lotado.
Esta é a conclusão de urbanistas ouvidos pelo Valor. Duas delas, Raquel Rolnik e Erminia Maricato, ambas professoras doutoras da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAUUSP), atuaram no Ministério das Cidades na gestão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Assim como Raquel e Erminia, Patricia Samora, professora da Universidade São Judas, e Maurício Broinizi, coordenador da secretaria executiva da Rede Nossa São Paulo, dizem que o Plano Diretor traz avanços, mas não lida com a questão da moradia, ponto nevrálgico para desfazer o nó da mobilidade urbana na metrópole. Prova disso são os recentes protestos por moradia em São Paulo.
"Esse tipo de protesto vai se tornar comum. Muitos não aceitam mais a condição de senzala", diz Erminia Maricato, referindo-se ao fato de que os pobres moram longe do centro e gastam mais com o transporte público. Segundo Erminia, ex-conselheira do programa Habitat da Organização das Nações Unidas (ONU) para assentamentos humanos, o país precisa de reforma na política fundiária.
"Aqui, o direito à propriedade é tomado absoluto, enquanto o direito à moradia não", diz Erminia. Assim, o dono de um imóvel pode deixá-lo fechado ou abandonado até se valorizar e o poder público não vai cobrá-lo sobre a função social daquele bem – ser moradia do proprietário ou de terceiros.
Essas situações, diz Erminia, levam ao "boom" imobiliário vivido nas principais cidades do país, como São Paulo. "Há uma valorização obscena do metro quadrado na capital e, por conta dos aluguéis altos, as pessoas moram cada vez mais longe."
No limite, esse cenário conduz a invasões e habitações precárias, que atingem inclusive áreas de manancial. "As grandes cidades estão cheias de planos sem obras e de obras sem planos, o que faz com que os centros urbanos se tornem insuportáveis", diz Erminia, ex-secretária-executiva do Ministério das Cidades (2002 a 2005). Ela diz que as diretrizes do Plano Diretor anterior, aprovado em 2002, eram "perfeitas" e traziam propostas para conter a expansão horizontal da metrópole e priorizar o transporte público e o não o individual, mas nada foi cumprido.
Para Raquel Rolnik, as manifestações pedem uma reforma urbana capaz de fazer com que a cidade seja para todos e não apenas para quem tem dinheiro. "Isso vai muito além do que diz o Plano Diretor", diz a urbanista, relatora especial do Conselho de Direitos Humanos da ONU para o Direito à Moradia Adequada. Segundo ela, o tema da mobilidade tem muitas dimensões, e o Plano Diretor trabalha com uma delas, que é a questão do uso e ocupação do solo.
Sob esse aspecto, o Plano Diretor trata da mobilidade à medida que as decisões sobre onde ficam áreas residenciais, centros de emprego e de comércio impactam na necessidade de deslocamento da população. "Mas essa é apenas uma das dimensões da mobilidade, com a qual o plano tenta estabelecer diálogo a partir do conceito básico dos eixos", diz Raquel.
Neste sentido, o Plano Diretor traçou para São Paulo eixos mais densos, com prédios altos em zonas de interesse misto (comercial e residencial), instalados em vias de transporte de alta capacidade (perto de metrô, trem e corredor de ônibus), e "miolos" menos povoados, com prédios baixos, residenciais, e incentivo ao transporte não motorizado. O problema, diz Raquel, é que a definição não abrange a cidade inteira. "Quando chega às macroáreas de estruturação metropolitana, que abrangem as várzeas dos rios Pinheiros, Tietê e Tamanduateí, e a Avenida Jacu-Pêssego, os eixos param."
Segundo Raquel, essas áreas são reservadas a "projetos futuros de reestruturação", o que sugere a ideia de parcerias público-privadas, e isso preocupa. "Se a cidade está se repensando na tentativa de ser igualitária, precisa fazer isso como um todo e não criar novos nichos", diz Raquel, ex-secretária de Programas Urbanos do Ministério das Cidades (2003-2007).
Para Maurício Broinizi, da Rede Nossa São Paulo, o Plano Diretor tratou genericamente da redução da desigualdade social. Metade dos 96 distritos da capital não tem equipamentos e serviços públicos, desde postos de saúde até bibliotecas ou centros culturais e esportivos, diz Broinizi. E, com o déficit de equipamentos sociais e culturais, não dá para resolver a questão da mobilidade, acrescenta: "As pessoas vão continuar se deslocando intensamente."
Mas antes de resolver o déficit, São Paulo precisa ter unidade territorial, afirma Broinizi. A cidade tem bases territoriais diferentes – de serviços (água, gás, telefonia) até instâncias do poder público (cartórios eleitorais, delegacias). "Se você tem dificuldade em levantar dados unificados, fica difícil propor soluções precisas".
Relator do texto, o vereador Nabil Bonduki (PT) diz que o plano responde de maneira adequada a parte das reivindicações de junho de 2013. "Não [responde] 100%, há visões contrárias, que se opõem. Mas as principais questões estão sendo atendidas."
Presidente da Comissão de Política Urbana da Câmara, o vereador Andrea Matarazzo (PSDB) diz que os adensamentos deveriam ter sido pensados de modo a beneficiar as regiões distantes do município e atrair a instalação de empresas: "Na Radial Leste, por exemplo, você acha que o setor imobiliário vai preferir construir na Mooca ou no Aricanduva?". Ex-secretário das subprefeituras na gestão José Serra, Matarazzo diz que apresentará novas emendas ao projeto na segunda votação. No entanto, nem o vereador nem o seu gabinete localizaram as sugestões ao texto do Executivo.
Para Patricia Samora, da São Judas, o plano tem aspectos bons e ruins. Ela discorda dos vereadores da oposição na questão do adensamento das grandes vias. "Antes, se definia o território a partir dos interesses dos vereadores. A ideia é verticalizar onde já existem vias", afirma. Guilherme Boulos, líder do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), diz que o plano não traz uma revolução urbana, "mas nenhum plano representaria. As grandes mudanças não se dão por leis, e sim, por mobilização".
Matéria publicada originalmente no jornal Valor Econômico.
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