Atacada por parlamentares e juristas e questionada pelo vice-presidente da República, a Política Nacional de Participação Social, estabelecida no fim do mês passado por Dilma Rousseff, chega à sua segunda semana de vida ameaçada de não vingar.
Por Gabriel Manzano
Sob ataque das oposições e de juristas, que apontam nova tentativa do governo petista de implantar uma democracia direta no País, mas defendida com vigor pela presidente Dilma Rousseff, a recém-nascida Política Nacional de Participação Social, instituída via decreto 8.243, chega à sua segunda semana de vida ameaçada de não vingar.
O presidente da Câmara, deputado Henrique Alves (PMDB-RN), quer que o governo transforme o texto em projeto de lei a ser debatido pelos parlamentares. Um bloco de dez partidos luta para derrubar o decreto no Supremo Tribunal Federal. A Ordem dos Advogados do Brasil também avalia contestá-lo nos tribunais. Aliados do Planalto silenciam e o próprio vice-presidente da República, Michel Temer, lança dúvidas sobre a maneira monocrática como a medida foi instituída.
Divulgado no dia 26 de maio, o decreto se propõe, em seus 22 artigos, a instituir um complexo sistema de consultas no qual a “sociedade civil” tem papel central. São criados conselhos, comissões, conferências, ouvidorias, mesas de debate e fóruns, além de audiências e consultas públicas. Essas instâncias ajudariam na elaboração de políticas públicas e atuariam como fiscais, sob o argumento de “consolidar a participação social como método de governo”. Por fim, o decreto encarrega a Secretaria-Geral da Presidência de dar “suporte técnico e administrativo” ao sistema.
Não estão definidos ainda os critérios para escolha dos integrantes da sociedade civil que vão participar. Estão aptos “cidadãos”, ou seja, qualquer pessoa, “coletivos”, grupos organizados nos quais se incluem centros de pesquisa, e “movimentos sociais” – os sem-terra, sem teto, pelo passe livre, etc.
Não demorou para que o documento despertasse desconfianças. “É um decreto autoritário. Tem vagas declarações democráticas, mas sujeita ao puro arbítrio da cúpula a participação social em assuntos administrativos”, diz o jurista Carlos Ari Sundfeld, professor de Direito Administrativo na FGV-SP. O texto, diz ele, “adota o método do sindicalismo da era Vargas, para gerar uma sociedade civil chapa branca, que fale por meio de instâncias sob controle oficial”.
Na linha de frente contra os 22 artigos está também o jurista e ex-ministro Miguel Reale Jr., para quem o decreto “é genérico, nada especifica sobre os movimentos sociais, cria organismos que vão interferir no processo decisório da administração, cria um Estado paralelo. Enfim, exorbita absolutamente do âmbito da lei”. Ao assiná-lo, diz o ex-ministro, Dilma está apenas dizendo às multidões insatisfeitas das ruas: ‘Vejam, eu estou olhando por vocês’”.
A lista de críticos inclui o ministro do STF Gilmar Mendes, que chama o decreto de “autoritário”, e o ex-ministro da Corte Carlos Velloso, que vê na iniciativa “uma coisa bolivariana, com aparência de legalidade”.
Outro ex-ministro, Eros Grau, afirma que o País “tem
uma Constituição que permite que o povo se manifeste e esse negócio de conselho popular e consultas talvez seja expediente para legitimar o que não é legítimo”. O ministro do Supremo Marco Aurélio Mello diz não ver “nada em contrário à Constituição”, mas se preocupa com um aspecto: a criação de um fundo destinado a gerir o sistema.
Atacada, a presidente Dilma reagiu rápido. O decreto, diz ela, permite a participação “de todos os segmentos” na estruturação das políticas de governo. “Muitas cabeças pensam mais que só a cabeça do Executivo”, afirmou na semana passada.
Estudioso do assunto há muitos anos, o cientista político Rudá Ricci considera as críticas “má-fé ou ignorância de quem não leu o projeto”. Em seu entender, o texto nada tem de eleitoreiro, não invade competências do Legislativo e o modo como funcionarão os conselhos populares “é apenas uma síntese de práticas já existentes no País”. A estrutura criada, diz ele, “antecipa qualquer confronto de rua, já que se torna uma escuta permanente, institucional”.
Incertezas. Como pano de fundo do debate estão antigas polêmicas sobre democracia direta e os chamados “conselhos populares” – temas que, no passado, desgastaram o PT e fizeram o governo recuar de iniciativas como a criação de um Conselho Federal de Jornalismo. Além disso, vem a público num momento marcado por greves de transporte, protestos de rua e uma Copa do Mundo.
Os críticos lembram que as possibilidades de democracia direta garantidas na Constituição se limitam a plebiscitos, referendos e leis de iniciativa popular, como a da Ficha Limpa. Os defensores do decreto argumentam que o Executivo consultar a sociedade para definir suas políticas é um procedimento natural, que já ocorre em áreas como a da saúde e da assistência à criança.
O professor de História Contemporânea da USP Lincoln Secco entende que o projeto “é, ainda, uma resposta aos protestos de junho passado”. Autor de A História do PT, Secco diz que o descontrole atual das ruas tem origem no governo Luiz Inácio Lula da Silva, que, em seu início, convocou sindicatos, movimentos e pastorais para compor as áreas sociais dos ministérios.
“Isso afastou esses grupos da rua e das carências imediatas dos pobres”, diz. Nesse vazio surgiram “esses novíssimos movimentos que escapam ao controle do PT e colocam pautas que o governo tem dificuldades de resolver”. O anunciado Sistema Nacional de Participação Social teria a função, afirma, “de canalizar essas reivindicações”.
Matéria originalmente publicada no jornal O Estado de S. Paulo