Por Jorge Abrahão, diretor-presidente do Instituto Ethos.
Um assunto vem causando muita polêmica nas redes sociais e ganhando até mesmo editoriais em influentes jornais diários do país. Trata-se da Política Nacional de Participação Social (PNPS), que regulamenta como a sociedade civil pode participar na formulação e avaliação de políticas públicas na administração federal.
A PNPS vem sendo chamada de “golpe”, de “mudança de regime por decreto”, mas não é nada disso. O decreto que parte da oposição tenta barrar na Câmara de Deputados regulamenta a Lei 10.683, de 28 de maio de 2003, e garante as conquistas que a sociedade brasileira vem preconizando desde as lutas pela redemocratização nos anos 1980 – e mesmo nas manifestações de junho do ano passado – de maior participação e influência nas decisões de governo.
Vamos comentar o Decreto 8.243, de 23 de maio de 2014, que instituiu a PNPS, para o leitor perceber que essa medida apenas estabelece, isto é, põe no papel as regras informais que já são utilizadas pelos movimentos sociais e os cidadãos para articular a atuação conjunta entre a sociedade civil e a administração pública federal.
Vamos passo a passo.
O que são, então, a PNPS e o Decreto 8243/2014?
Após a promulgação da Constituição Federal de 1988, foram instituídos diversos mecanismos e formas de participação social, como conselhos, conferências, ouvidorias, processos de participação no ciclo de planejamento e orçamento público, audiências e consultas públicas, mesas de diálogo e negociação, entre outros. A Política Nacional de Participação Social consolida os avanços dos últimos anos e será a referência que orientará os órgãos e entidades da administração pública federal para melhor utilização dos diversos processos, instâncias e mecanismos de participação social existentes, permitindo um maior grau de aderência social ao ciclo de gestão de políticas públicas e o aumento da transparência administrativa e da eficácia da gestão pública.
Principalmente, a PNPS abre caminho para as novas formas de participação social, por meio das redes sociais e dos mecanismos digitais de participação via internet. Dessa forma, coloca o Brasil à frente na agenda internacional de participação social, conferindo protagonismo aos novos movimentos sociais em rede, ao mesmo tempo em que reconhece e valoriza as formas tradicionais de participação e os movimentos sociais históricos.
É uma política que define, então, como os cidadãos podem estabelecer diálogo com as diversas instâncias da administração pública federal, conforme dispõe a Lei 10.683/2003. Essa lei foi votada da Câmara e no Senado e sancionada pela Presidência da República. E, como ocorre com qualquer lei, precisa de um decreto regulamentador que, de acordo com o artigo 84 da Constituição Federal, pode ser apresentado ao Congresso pelo Executivo.
Qual o objetivo da Política Nacional de Participação Social?
O principal objetivo da PNPS é a consolidação da participação social como método de governo. Para tanto, todos os órgãos e entidades da administração pública federal, direta e indireta (respeitadas suas especificidades), irão elaborar um plano de ação a cada dois anos para ampliação e fomento da participação social.
Como foi feito esse decreto?
Lembram-se da Lei Anticorrupção Empresarial, que já comentamos aqui várias vezes? O Instituto Ethos e a Controladoria-Geral da União (CGU) têm articulado algumas reuniões com empresas para colher sugestões para o decreto regulamentador da lei que também será enviado pelo Executivo (a Presidência da República) para o Congresso. Assim, para regulamentar a Lei 10.683/2003, a minuta do decreto foi submetida a consulta pública virtual, tendo recebido mais de 700 contribuições. Esse decreto precisa de aprovação do Congresso para entrar em vigor. Todavia, nenhum parlamentar pode dizer que desconhece seu conteúdo ou que se trata de “golpe”, pois nenhum de seus artigos ou cláusulas trata de assunto que já não esteja sendo praticado pela sociedade civil e pela administração pública federal.
Uma questão no decreto que levantou muita polêmica foi a definição de “sociedade civil”. Muitos afirmam que foi feita para deixar o governo na mão dos movimentos sociais. É verdade?
Não, não é verdade. O decreto define sociedade civil como sendo “o cidadão, os coletivos, os movimentos sociais institucionalizados ou não institucionalizados, suas redes e suas organizações”. O conceito precisa ser mais explícito do que aquele comumente aceito de “o espaço existente entre o Estado, o mercado e as famílias”. A ONU, a Cruz Vermelha, ONGs e movimentos por direitos são representantes da sociedade civil. Mas são institucionalizados, isto é, estabelecidos, com endereço e CNPJ. Ocorre que, se moradores de um bairro quiserem reivindicar asfalto ou iluminação para as ruas, embora não sendo institucionalizados, eles têm direito a ser ouvidos e atendidos. Para isso, os governos precisam oferecer ferramentas de participação, como ouvidorias, audiências públicas, canais de reclamação, reuniões comunitárias e outras formas de participação que a comunidade criar e aprovar. É por isso que o decreto menciona os movimentos não institucionalizados.
O que é o Sistema Nacional de Participação Social?
É o sistema instituído pelo texto do decreto. Ele será formado por instâncias e mecanismos como conselho de políticas públicas, comissão de políticas públicas, conferência nacional, ouvidoria pública federal, mesa de diálogo, fórum interconselhos, audiência pública, consulta pública e audiência virtual de participação social. Para participar dessas instâncias, será preciso eleger ou indicar representantes da sociedade civil em conferências e divulgar com antecedência os documentos a serem discutidos em audiência pública.
A PNPS interfere no Poder Legislativo?
Não. São duas instâncias diferentes. A PNPS interfere nas instâncias do Poder Executivo, mas de maneira “consultiva”. Ouvidorias, conselhos, consultas públicas e outras formas participativas não vão “mandar” nos governos, mas orientá-los na tomada de decisões. E, no que tange a audiências públicas, o Congresso, as assembleias legislativas e as câmaras municipais já realizam as suas quando precisam decidir a respeito de temas polêmicos.
O que as empresas ganham com a PNPS?
As empresas também fazem parte da sociedade civil, sendo talvez o seu segmento mais forte e mais bem organizado. Por isso, mais capaz de liderar as transformações de que necessita nosso país. Todos os canais do sistema de participação social também estão abertos à participação de representantes empresariais. De novo, volto a citar a Lei Anticorrupção Empresarial, que, para ser aprovada, contou o decidido apoio do setor privado. O projeto de lei foi posto em consulta pública antes de ser votado e agora o decreto regulamentador está sendo discutido pela CGU com amplos setores do empresariado para ser o mais claro e específico possível.
Vale ressaltar também que a própria Política Nacional de Participação Social é fruto de propostas feitas pela sociedade civil no final de 2012, no processo de elaboração do segundo Plano de Ação Brasileiro pelo Governo Aberto (ou OGP, da sigla em inglês para Open Government Partnership).
Para a construção desse plano, várias entidades da sociedade civil fizeram sugestões visando regulamentar a participação social. O Instituto Ethos, por exemplo, propôs uma regulamentação nacional para a realização de audiências públicas. Essa proposta foi pensada após diagnosticar o quadro nas doze cidades-sede da Copa de 2014, durante a elaboração e aplicação da primeira edição dos Indicadores de Transparência Municipal, lançada em 2012. Apenas cinco delas (Belo Horizonte, Fortaleza, Manaus, Natal e Recife) realizaram pelo menos uma audiência pública para debater os projetos relacionados ao megaevento.
O governo federal acatou as sugestões da sociedade civil durante a elaboração do Plano de Ação, mas preferiu reunir várias delas para criar uma única política nacional sobre a participação social, a qual foi instituída pelo decreto assinado em 23 de maio.
O que é Governo Aberto?
A Parceria para Governo Aberto (OGP) é uma iniciativa internacional que pretende difundir e incentivar globalmente práticas governamentais relacionadas à transparência dos governos, ao acesso à informação pública e à participação social.
A OGP foi lançada em 20 de setembro de 2011, quando os oito países fundadores da parceria (África do Sul, Brasil, Estados Unidos, Filipinas, Indonésia, México, Noruega e Reino Unido) assinaram a Declaração de Governo Aberto e apresentaram seus Planos de Ação. Atualmente, 63 países integram a parceria. Congregando nações e organizações da sociedade civil líderes em transparência e governo aberto, a OGP é um veículo para se avançar mundialmente no fortalecimento das democracias e dos direitos humanos, na luta contra a corrupção e no fomento a inovações e tecnologias para transformar a governança do século 21. No total, os países integrantes da OGP assumiram até agora cerca de 1.000 compromissos para tornar seus governos mais transparentes.
Matéria originalmente publicada no portal do Instituto Ethos