Artigo de WASHINGTON NOVAES – O ESTADO DE S.PAULO
A Organização das Nações Unidas (ONU), ao mesmo tempo que faz um relatório sobre a realização das metas do Desenvolvimento do Milênio, que seguirão até o ano que vem, já cuida de novos objetivos. E não é pessimista. Acha que a vida de "milhões de pessoas" melhorou com esforços locais, regionais e nacionais, que reduziram a pobreza, levaram 2,3 bilhões de pessoas ao acesso à água de boa qualidade, melhoraram as condições de moradia em favelas e promoveram a igualdade entre sexos na frequência a escolas. Se essa rota prosseguir, diz, o mundo superará também as metas no combate à malária, à tuberculose e à aids, e promoverá maior participação das mulheres na política.
Nos últimos 20 anos, a probabilidade de uma criança morrer antes dos 5 anos caiu pela metade, o que significa 17 mil menos mortes por dia, com a taxa de mortalidade materna também baixando 45% entre 1990 e 2013. Os tratamentos para aids salvaram 6,6 milhões de vidas desde 1995, 3,3 milhões de mortes por malária foram evitadas, a luta contra a tuberculose poupou 22 milhões de vidas, um quarto da população mundial passou a dispor de instalações sanitárias em sua casa – mas 1 bilhão ainda "defeca ao ar livre".
A ONU, entretanto, volta a advertir que a concentração de pessoas nas áreas urbanas do mundo já está em 54% do total e chegará a 66% – mais 2,5 bilhões – em 2050, principalmente na Índia (mais 404 milhões), na China (292 milhões) e na Nigéria. O mundo passará das 10 megacidades (mais de 10 milhões de pessoas cada) que existem hoje para 28, com o total de 453 milhões. Entre elas, São Paulo, com 12,24 milhões.
Como se fará para administrar os grandes espaços urbanos? Hoje, a maior dificuldade de um administrador público nas áreas urbanas está na necessidade de trabalhar simultaneamente em dois planos: 1) Como atender às necessidades imediatas das populações em áreas como transporte, habitação, mobilidade e manutenção da qualidade de vida; e 2) como fazê-lo sem perder a perspectiva mais ampla de readequar a ocupação do espaço urbano, reconformá-lo à necessidade de reverter a insustentável aglomeração, que já é uma das preocupações maiores da ONU, por exemplo.
Os esforços terão de ser gigantescos. Para ficar num exemplo, a Europa terá de investir US$ 1 trilhão em energias renováveis, até 2030, para reduzir suas emissões de gases poluentes na geração de energia de 1,3 bilhão de toneladas anuais para 564 milhões de toneladas. Se não o fizer, as mudanças climáticas que já afetam duramente o continente serão muito mais graves ainda – diz o relatório Bloomberg New Energy Finance (14/7). O esforço maior terá de ser nas áreas de energias solar e eólica.
Até 2030, dizem os estudos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a tendência no Brasil será de um "acelerado envelhecimento da população", que estará no total em 208 milhões de pessoas. A população idosa, com mais de 60 anos, já em 23 milhões em 2011, poderá significar uma porcentagem ainda maior desse segmento. Em São Paulo são hoje 13,18% da população com mais de 60 anos, que serão 20,1% em 2030 – ante 13,18% de jovens até 15 anos, segundo o Sistema Estadual de Análise (Estado, 23/1). Também poderão crescer os índices de jovens que não trabalham nem estudam e dos que só estudam. Tudo nisso exigirá novas políticas específicas.
Artigo do sociólogo José de Souza Martins, neste jornal (6/7), chama a atenção para que a tendência ou intenção de apenas "deslocar pobres para o meio de ricos ou vice-versa", como colocam como objetivo maior tantos planos para as grandes cidades, pode "apenas desdobrar a ideologia oficial do processo social aparente". Com a impressão de resolver problemas, mas sem conseguir. Porque "os beneficiados pelas habitações sociais em enclaves de classes sociais mais altas serão assediados por compradores que não resistirão à tentação de comprar apartamentos baratos em bairros ricos, no espaço de outra classe". Ou seja, cuidar-se-ia apenas da "moldura do quadro, e não do quadro".
Grande parte das visões urbanísticas de hoje formula propostas que parecem alheias a transformações importantes – como, por exemplo, a tendência de boa parte da população a renunciar a compras in loco em shopping centers e migrar para compras via internet, que alguns estudos dizem já estar na casa dos 9% do total. Outros estudos (Estado, 2/7) chamam a atenção para a realidade dos Estados Unidos, onde é progressivo "o desinteresse" por shopping centers, a ponto de já em 2007 nenhum empreendimento desse tipo haver sido aberto.
E como se fará para contornar as lógicas apenas financeiras – empresariais e até pessoais – que parecem tudo comandar? Estudo de 2011, de S. Vitali, J. Glattfelder e S. Battiston (New Scientist, 22/10/2011), citado por Ladislau Dowbor, identificou 1.318 corporações num universo de 43.060 grandes empresas transnacionais, escolhidas entre 37 milhões. Esse núcleo, que concentra, segundo os autores, 20% das receitas globais de vendas, "detém um controle sobre a economia real que atinge 60% de todas as vendas realizadas no mundo todo". Daí decorre uma lógica que acaba prevalecendo em toda parte, embora a concentração de poder "em si não seja boa nem ruim – mas essa interconexão pode ser", ao final. "Na verdade, 1% das companhias controla 40% da rede inteira", afirmam eles. E "a maioria são bancos".
Não se trata de lógicas ou ações fora da lei. Mas certamente essas lógicas terão de ser confrontadas com horizontes que a ONU aponta em suas metas do Desenvolvimento do Milênio. E confrontadas com as estratégias indispensáveis para enfrentar os gigantescos problemas da progressiva concentração urbana. Se não formos por aí, a vida nos grandes aglomerados será cada vez menos suportável – mas sem rotas de saída.
WASHINGTON NOVAES É JORNALISTA E-MAIL: WLRNOVAES@UOL.COM.BR
Artigo publicado originalmente no jornal O Estado de S.Paulo.