Turno criado há mais de 30 anos resiste em 11 escolas; aulas têm 1h a menos e acontecem na hora do almoço: das 11h às 15h.
Por Davi Lira
Cerca de 3,5 mil alunos ainda estudam no turno intermediário – o chamado 'turno da fome' – em escolas públicas da rede municipal de São Paulo. Eles estão concentrados em 11 escolas, localizadas em áreas periféricas, violentas e carentes de uma série de serviços públicos de qualidade, segundo dados da Rede Nossa São Paulo.
Problema de mais de 30 anos, o turno intermediário é reflexo de falha na expansão escolar por parte das gestões municipais, que não foram suficientemente capazes de ampliar a oferta de vagas e unidades escolares para atender toda demanda de estudantes espalhados pela metrópole, afirmam especialistas consultados pelo iG.
A criação desse horário no meio dos turnos matutino e vespertino tem como principal justificativa a busca pelo atendimento universal de estudantes. "Se fosse o meu neto, eu preferiria ele em uma turma ruim, a da fome, vamos dizer assim, do que o meu neto na rua. A gente resolveu abrigar todo mundo", justifica Fernando Almeida, diretor de Orientação Técnica (DOT) da Secretaria Municipal de Educação (SME) da Prefeitura de São Paulo.
Depois de uma série de promessas do fim desse turno – que conta com aulas das 11h às 15h –, a extinção do 'horário da fome' ainda não se tornou uma realidade. Desde a gestão anterior, do prefeito Gilberto Kassab, a Prefeitura havia prometido o fim dele, mas sem sucesso. Confira posição mais atual, de 2014:
Problemas
Uma das críticas a esse turno é a alteração do ciclo biológico dos estudantes que passam a estudar durante uma faixa horária que coincide com o almoço. "É um horário meio cortado. Acaba mexendo com o psicológio dele, não é? E fica difícil para quem trabalha levar e buscar [a criança]", diz Celidalva Oliveira, de 44 anos, mãe de Paulo Henrique, de 7.
Paulo é um dos 3,5 mil alunos matriculados no turno intermediário. Ele estuda na Escola Municipal de Ensino Fundamental Desembargador Teodomiro Toledo Piza, localizada no Grajaú, no extremo sul de São Paulo. "Não é o melhor. Preferia estudar de manhã, mas nem tem minha série cedinho", fala o garoto que está no 2º ano do fundamental. Por vezes, quando precisa chegar mais cedo, ele se depara com a falta de atividades na escola. "Hoje mesmo não tivemos aula de xadrez. A professora faltou", fala o garoto.
Além disso, o "mais grave", segundo Ocimar Alavarse, professor da Faculdade de Educação da USP e conselheiro suplente do Conselho Municipal de Educação, é a carga horária destinada ao ensino. Nas escolas com turno intermediário, os alunos têm uma hora a menos de aula.
"As escolas com turno da fome atendem a mais crianças. Chegam a oferecer até quatro turnos, se incluirmos as turmas de Educação de Jovens e Adultos ofertadas à noite. Esse alto atendimento tem impactos negativos na carga horária voltada ao ensino, que fica reduzida. Sem falar no comprometimento da administração escolar", diz Alavarse.
Os reflexos "diretos" na organização das escolas são confirmados por uma gestora de uma das unidades com turno da forme, que preferiu não se identificar. À reportagem, ela afirmou que a estrutura física da escola não dá conta do fluxo de alunos vinculados à unidade.
"Temos problemas sérios de espaços [físicos], além dos problemas antigos de vazamento e infiltrações. Como não há espaço e tempo suficientemente adequados entre os turnos, acaba sendo um tumulto a entrada de um e a chegada de outro. Acabamos pedindo para os próprios alunos limparem as salas, porque mal dá tempo para o pessoal da limpeza organizar o ambiente", fala a gestora.
Segundo ela, a escola já pensou em alocar alunos para outras unidades de ensino, mas parte dos professores não queria ter a carga horária diminuída. "Sendo assim, a realidade de hoje é que, sem salas e ambientes suficientes, muitos alunos ficam sem a aula de educação física, por exemplo. Além disso, as turmas de 1º ano ficam superlotadas. Também não há monitores suficientes para auxiliar os alunos com algum tipo de deficiência. Sem falar nas atividades do contraturno, que ficam comprometidas, já que não há espaço livre adequado".
Alcance limitado
Mesmo representando uma pequena parcela de alunos, em comparação com o total de estudantes da rede (mais de 900 mil atualmente), vários especialistas afirmam que o turno da fome, considerado "vergonhoso", não deveria sequer existir. Segundo eles, o número de alunos nesse turno já deveria estar zerado.
"Tem que acabar. Na verdade, já deveria ter acabado. O prejuízo para a vida das crianças que estão no turno da fome é eterno. Não tem explicação. Duvido que as coordenadorias [de ensino] não conseguiriam distribuir os alunos [para outras escolas]", afirma Daniel Cara, coordenador-geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, que congrega uma série de importantes organizações que advogam pela melhoria da educação no País.
Mesmo tendo uma posição parcialmente semelhante à de Daniel Cara, Priscila Cruz, diretora executiva da ONG Todos pela Educação, faz uma ponderação no que se refere à lógica das políticas públicas.
"Do ponto de vista do direito humano à educação, a resposta é que não deveria ter [nenhum estudante no turno da fome]. Mas já sob a perspectiva da política pública, você não consegue sentar na cadeira do gestor e resolver os problemas do dia para a noite, existe toda uma trajetória a ser construída", diz Priscila.
Ainda segundo ela, se essa trajetória está mostrando que o turno da fome está sendo reduzido, a situação se torna menos problemática. "Ainda que lentamente, como tudo na educação, nós podemos considerar que a situação fica menos drástica", fala a diretora do Todos pela Educação.
Ocimar Alavarse também enxerga a questão com cautela e reconhece a dificuldade de atender a demanda de alunos espallhados pela cidade. Além disso, o professor da USP também destaca o que chama de "erro conceitual" de chamar o turno intermediário de turno da fome. "Esse turno tem um nome que não corresponde com a realidade. Não é verdade que eles [os estudantes] passam fome, como o nome sugere. Todos os estudantes têm acesso à refeições entre as aulas, até mais completas que as merendas regulares", diz Alavarse.
Prefeitura
Questionada sobre os números da reportagem, obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação, a Prefeitura de São Paulo, por meio da Secretaria Municipal de Educação (SME), informou que o "Programa Mais Educação São Paulo prevê a expansão das EMEFs [Escolas Municipais de Ensino Fundamental] com o objetivo de extinguir o turno diurno intermediário [o 'turno da fome'] e aumentar a capacidade das unidades de ampliar o período de permanência dos alunos na escola".
A SME também afirmou que, de 2013 para 2014, diminuiu de 23 para 11 o número de escolas com o turno intermediário. Além disso, do ano passado até junho de 2014, "a atual gestão entregou 15 EMEIs [Escolas Municipais de Educação Infantil] e há 8 em obras. Em 2013, foram entregues 3 EMEFs e, em 2014, foram entregues outras 5. Até o final deste ano mais 9 obras serão entregues".
Por fim, a secretaria disse que, "com o plano de obras em curso, o turno intermediário será extinto até o final de 2016".
Três perguntas para João Paulo Faustinoni e Silva, Promotor de Justiça integrante do Grupo de Atuação Especial de Educação do Ministério Público do Estado de São Paulo.
1. Por que ainda existe o turno da fome em São Paulo?
A priorização real certamente solucionaria o problema com maior rapidez. Há problemas [envolvendo a área de educação] se arrastando há várias gestões. Essa atual gestão já assumiu com problemas existentes, e a anterior também. Mas o fato é que a Constituição coloca a criança como prioridade absoluta. [Então,] se ainda temos 120 mil crianças numa fila de vaga em creche, se ainda há crianças frequentando o turno de quatro horas, isso significa alguma coisa. Os problemas são complexos em São Paulo. A cidade é complicada, gigantesca. É uma somatória da falta de emprego prioritário de recursos e de gestões mais eficientes nessa área.
2. A Prefeitura de São Paulo está cometendo alguma ilegalidade por oferecer o turno da fome a cerca de 3,5 mil alunos?
A LDB [Lei de Diretrizes e Bases da Educação] disciplina um determinado número de dias [por ano] e horas-aula, e não diz categoricamente que o período precisa ser integral ou parcial. Logo, não haveria ilegalidade. O que nós precisamos questionar é sobre a qualidade. Porque todas essas questões apontam a uma falha na prestação do serviço. E o Ministério Público atua apontando os problemas e cobrando correções de rumo. Só que os direitos sociais têm uma série de peculiaridades, eles dependem da criação de serviços que não são feitos de uma hora para a outra.
3. Atualmente, o MP tem algum processo de investigação envolvendo o turno da fome?
Não temos um inquérito específico sobre isso. Mas temos um inquérito que trata da expansão, com qualidade, da rede de educação infantil. E na reunião recente que tivemos com a secretaria municipal [de educação], foi discutido o plano de expansão de vagas e também a jornada de quatro horas [o turno da fome]. Pelo projeto de expansão, a secretaria nos informou que até 2016 não haveria mais esse turno.
Acesse todos os dados oficiais utilizados pela reportagem no portal iG Transparência.
Matéria originalmente publicada no portal iG