Água corrente

Não potável, recurso de lençol freático que jorra em edifícios pode ser usado para limpeza.

Por Marcos Dávila

Faz dias que não chove. O sol castiga o asfalto no bairro da Liberdade e eis que surge um riacho veloz na sarjeta da rua Dr. Tomaz de Lima (região central). O nível do reservatório Cantareira registra apenas 10% de sua capacidade, contando o volume morto. Então, de onde vem tanta água em plena crise hídrica?

A corredeira chega a fazer barulho, arrastando as folhas secas e bitucas de cigarro à beira do meio-fio. Será algum desavisado limpando a calçada com o esguicho? Ninguém à vista naquele trecho da via.

O mistério é resolvido ao dobrar a esquina na rua Conde de Sarzeda, no alto da ladeira. O aguaçal vem de um cano na calçada em frente ao Tribunal de Justiça de São Paulo, no Edifício 9 de Julho, número 100.

"Com essa água dava para lavar a nossa frota de carros", diz um motorista que trabalha no tribunal. Segundo ele, a água jorra de meia em meia hora. Todos os dias são despejados milhares de litros na sarjeta, que já ganhou uma camada de limo.

Devido à profundidade da fundação do prédio, a água do lençol freático é desviada para um reservatório para não causar alagamento nas garagens dos subsolos. De quando em quando, a bomba é acionada, lançando o excesso de líquido para a rede pluvial na rua.

De acordo com o Tribunal de Justiça, "foram feitas diversas tentativas de reutilização da água, mas o forte cheiro de esgoto inviabiliza o uso".

Esse tipo de situação se repete em centenas de prédios na cidade, porém, não existe um levantamento oficial que contabilize todos os casos de edificações que fazem brotar água do lençol freático por conta da profundidade da fundação.

Dependendo da região da cidade, esses reservatórios superficiais subterrâneos, abastecidos pelas chuvas e vazamentos da rede pública, podem ser atingidos a menos de cinco metros de profundidade.

Armazenamento

Na rua Estevão Barbosa, nos fundos do edifício residencial Spazio di Vivere, na Vila Anglo (região oeste), um cano lança água na rua. Segundo o zelador Miguel Ramos da Costa, 55, a construção atingiu o lençol freático e precisa bombear a água para não inundar o segundo subsolo.

Parte da água drenada é armazenada em um poço em um reservatório de 5.000 litros e é usada para lavar o pátio e regar as plantas.

"Não é água potável, mas fizemos uma análise no Instituto Adolfo Lutz e ela foi considerada satisfatória para esse uso", diz o zelador.

Logo em frente fica um depósito de material reciclável. Indignado com o desperdício, o proprietário Roberto Barriento, 46, criou um sistema de captação com um pedaço de cano e uma mangueira.

São necessários apenas três minutos para encher um tonel de 200 litros, tamanha a pressão. Ele trabalha há 28 anos no mesmo local e aproveita a água para lavar os carros e o pátio.

"Liguei para a Sabesp várias vezes, mandei e-mail, mas ninguém vem", diz Barriento. A empresa não é responsável pelos casos de rebaixamento do lençol freático Ðapenas se a água for direcionada para a rede de esgoto, cuidada pela estatal, é preciso pagar taxa mensal.

As águas subterrâneas são assunto do Daee (Departamento de Águas e Energia Elétrica). Por meio de sua assessoria de comunicação, o Daee afirma que "o processo de lançamento dessa água [dos lençóis freáticos] na sarjeta é uma prática regular, pois, dessa maneira, ela cumpre o seu ciclo hídrico. O não descarte desse recurso pode ser prejudicial à estrutura do imóvel".

Segundo o Daee, para o descarte em via pública, não é necessária nenhuma formalização.

O pedido de outorga ou cadastramento só é necessário quando se faz a utilização da água. Em setembro, o órgão publicou uma portaria que permite o uso de recursos hídricos decorrentes de rebaixamento de lençol freático. Quando a captação atinge uma quantidade igual ou superior a 5.000 litros por dia, está sujeita ao cadastramento e à outorga. Se for inferior, é necessário apenas o cadastramento.

De acordo com a Cetesb (companhia ambiental de SP), a água proveniente do rebaixamento do lençol não pode ser ingerida e deve ser armazenada separadamente da água potável da rede pública.

"Estamos jogando fora uma coisa que agora tem valor, mas antes não se dava bola", afirma Reginaldo Bertolo, diretor do Cepas (Centro de Pesquisa de Águas Subterrâneas), da USP, sobre os recursos do lençol freático. Ele explica que essas águas tendem a ter uma qualidade ruim.

"Toda sorte de atividades que acontecem na superfície geram poluentes que migram solo adentro até alcançar o aquífero freático."

Os vazamentos da rede pública de esgoto, de postos de gasolina e de fossas são apontados como os principais causadores de contaminação. Os resíduos industriais podem gerar uma poluição ainda mais tóxica.

Mesmo sem potabilidade, esse recurso hídrico poderia ser utilizado para lavagem de calçadas, pátios e carros, rega de jardins e até como descarga sanitária. "Prédios que drenam continuamente a água do freático devem investir num reservatório para que a água seja usada para fins não nobres", diz Bertolo.

O professor de engenharia hídrica Ivanildo Hespanhol, diretor do Centro Internacional de Referência em Reuso de Água, cita o exemplo do Sesc Pinheiros, na zona oeste.

Durante a construção, brotou água com alta concentração de ferro em dois pontos da garagem. Depois de tratada, a água pode ser usada nas bacias sanitárias e na limpeza do piso. Mensalmente, são captados e utilizados 600 mil litros.

Águas profundas

Um estudo do Cepas mostra que há hoje uma oferta de 16 mil litros de água por segundo nos aquíferos da região metropolitana. É uma vazão compatível com uma Guarapiranga inteira, que abastece 4,9 milhões de pessoas. Dez mil litros de água por segundo já são utilizados por poços privados, inclusive os clandestinos.

De acordo com o diretor do Cepas, é preciso diferenciar a água encontrada no aquífero superficial Ðque pode aparecer nas garagens dos prédiosÐ daquela dos poços profundos, chamados de artesianos.

Esses poços chegam a ter entre 150 e 200 metros de profundidade e captam uma água de boa qualidade. A vazão é alta e permite atender demandas de hospitais, creches, escolas, indústrias e condomínios.

A maior parte deles, no entanto, é ilegal. O mesmo estudo do Cepas mostra que, dos 12 mil poços 60% são clandestinos. Além disso, existem áreas superexploradas. "Algumas zonas estão secando", alerta.

O diretor do Cepas explica que a quantidade de poços profundos utilizada para o abastecimento público é irrisória. Esse recurso deveria ser considerado nas épocas de seca.

"É uma água privatizada. Talvez chegue o momento em que alguma autoridade pública decrete estado de calamidade ou emergência e esses poços particulares sejam requeridos. A água subterrânea pode desempenhar um papel muito importante para a segurança hídrica da população, principalmente em momentos de escassez", afirma Bertolo.

Matéria originalmente publicada na revista sãpaulo

Compartilhe este artigo