Por Marcelo Leite
O renomado climatologista Carlos Afonso Nobre está muito preocupado com a crise hídrica. No Sudeste, para que a estação chuvosa janeiro-março fique na média histórica, seria preciso chover 60% a 80% mais que o usual nos dois meses que faltam.
O problema é que não há como prever se isso vai ocorrer. No ano passado, o bloqueio atmosférico (massa de ar que impede a entrada de umidade) durou até meados de fevereiro. A boa notícia é que, neste janeiro de 2015, ele foi rompido pela frente fria dos últimos dias -mas nada impede a sua volta.
As condições do Sudeste, afirma, fazem dele uma região de baixa previsibilidade para secas e chuvas, mesmo na escala de semanas.
Secretário de Políticas e Programas de Pesquisa e Desenvolvimento do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, Nobre se encontra na posição desconfortável de ser um destacado estudioso da mudança do clima com funções executivas num ministério em que o titular (Aldo Rebelo) já pôs o fenômeno em dúvida. Evita tratar do assunto, porém, por ter convivido pouco com o novo ministro.
De todo modo, Nobre não abandona a prudência científica. "É difícil atribuir ao aquecimento global um extremo climático como as secas do Sudeste", afirma nesta entrevista, concedida por escrito.
A impossibilidade de se relacionar diretamente a mudança climática a episódios específicos não significa, porém, que governos não devam se preparar para o aumento de eventos extremos causado por ela, diz Nobre.
Folha – O verão 2013/14 foi o mais seco em 62 anos no Sudeste, em especial na bacia que alimenta o Cantareira. Já é possível avaliar se o de 2014/15 irá superá-lo ou igualá-lo?
Carlos Nobre – Ainda não, pois fevereiro e março são meses da estação chuvosa. De qualquer maneira, para que a estação chuvosa no Sudeste se encerrasse dentro da média histórica, as chuvas em fevereiro e março deveriam ficar de 60% a 80% acima da média.
Até novembro e dezembro de 2013, as previsões sazonais não haviam sido capazes de indicar a estiagem que viria em janeiro de 2014.
De fato, não há quase nenhuma previsibilidade para a região Sudeste e Centro-Oeste quando se trabalha com uma escala de meses.
Tal região não está entre os locais do planeta com previsibilidade climática sazonal, como o norte do Nordeste, partes da Amazônia e Sudeste da América do Sul (centro-leste da Argentina, Uruguai e Paraguai, e sul do Brasil).
A variabilidade climática no Sudeste é fortemente influenciada por frentes frias e por fenômenos atmosféricos de grande escala, como os bloqueios, que geram os veranicos [com estiagem] no meio da estação chuvosa, que são difíceis da prever. Isso aumenta o nível de incerteza na gestão dos recursos hídricos.
Isso vale para a maior parte do Brasil?
No semiárido do Nordeste, as previsões de secas com antecedência de alguns meses têm alto índice de acerto, quase 80%, e são forma importante para políticas de mitigação dos impactos das secas.
Para a estação chuvosa principal do semiárido, de fevereiro a maio deste ano, as previsões indicam risco de chuvas abaixo da média, um quadro de continuidade do deficit hídrico de vários anos.
No caso da Amazônia, é significativo o risco de grandes incêndios florestais, como em 1998 em Roraima?
Para o norte da Amazônia, especialmente Roraima, as chuvas dos últimos meses têm estado um pouco abaixo da média histórica, e fevereiro e março são meses do período mais seco do ano.
A principal explicação para chuvas abaixo da média no norte da Amazônia é o El Niño [superaquecimento das águas do Pacífico que aquece a atmosfera], ainda que o episódio atual seja considerado fraco e deva se enfraquecer-se nos próximos meses. Não se espera uma seca tão intensa em Roraima como foi aquela de 1997-98, reflexo do mega-El Niño ocorrido então.
Em janeiro de 2014, o bloqueio atmosférico permaneceu até meados de fevereiro. Com a frente fria que chegou a SP nesta quinta-feira (22), pode-se dizer que o pior já passou?
Como disse, prever bloqueios atmosféricos com semanas de antecedência não é factível. Mas, de fato, a situação a partir da chegada de uma fraca frente fria ao Sudeste nos últimos dias é diferente daquela de janeiro e fevereiro de 2014.
A repetição em 2014 e 2015 de condições de estiagem grave, ao menos no Sudeste, pode ter relação com o aquecimento global? Afinal, 2014 foi declarado pela Nasa e pela Noaa o mais quente já registrado. Qual é a chance de que seja apenas uma coincidência?
O fato de que as observações globais indicam a continuidade da tendência de aquecimento global, com 2014 sendo o ano com a mais alta temperatura à superfície desde 1860, é algo bem esperado, em razão da crescente quantidade de gases do efeito estufa na atmosfera.
Por outro lado, é bem mais difícil atribuir ao aquecimento global um extremo climático como as secas do Sudeste. São necessários estudos com modelos climáticos globais complexos, nos quais se simula o clima com e sem os aumentos dos gases-estufa.
Além disso, sempre é necessário estabelecer quais são os mecanismos físicos para a mudança. No caso de bloqueios atmosféricos, envolveria entender como mecanismos complexos. Como a propagação de ondas atmosféricas de milhares de quilômetros está respondendo ao aquecimento global? Trata-se de uma tarefa cientificamente bastante desafiadora.
Como se explica que reservatórios relativamente próximos, como Guarapiranga/Billings e Cantareira tenham comportamento tão díspares?
Em anos de bloqueios atmosféricos grandes sobre o Sudeste, toda a região apresenta chuvas abaixo da média. O efeito de ilha urbana de calor [afetadas pela temperatura mais elevada da cidade, massas úmidas de passagem viram tempestades], porém, atua para fazer com que os deficits sobre a região metropolitana de São Paulo sejam menores do que em regiões vizinhas, como o Cantareira.
Por outro lado, mesmo excetuando fenômenos de grande escala como os bloqueios, observa-se uma diminuição relativa das chuvas sobre o Cantareira nas últimas décadas e um aumento das chuvas sobre a cidade. Hipoteticamente, esse efeito de longo prazo pode estar relacionado com a ilha urbana de calor, mas estudos em andamento precisarão comprovar, ou não, essa hipótese.
O governo federal já trabalha com a hipótese de que a Grande São Paulo chegue a um estado de calamidade pública, com esgotamento completo do sistema Cantareira, por exemplo?
O Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais) desenvolveu um modelo hidrológico para o sistema Cantareira e instalou, em abril e maio de 2014, 33 pluviômetros automáticos para melhorar o monitoramento das chuvas sobre as bacias de captação. Como não é factível prever hoje as chuvas em fevereiro e março, pode-se apenas traçar cenários.
No caso de continuidade de chuvas abaixo da média nesses meses, de fato há risco de o reservatório não ter condições de manter o abastecimento nos níveis atuais.
O que o poder público deve fazer no médio e no longo prazos para prevenir a repetição dessa situação limítrofe? Diria que se trata do principal problema no campo da adaptação à mudança do clima?
Adaptação às mudanças climáticas deve ser uma prioridade de política pública. Hidrólogos devem incorporar o fato de que os extremos climáticos estão se tornando mais frequentes e, em muitos casos, mais intensos.
Em outras palavras, as séries históricas de observações hidrológicas não podem mais ser consideradas estacionárias. O planejamento da utilização dos recursos hídricos deve levar em conta isso. A atual crise hídrica já está tendo um impacto em demonstrar que o Brasil precisa urgentemente buscar desenvolver sistemas e infraestruturas resistentes ao aumentos dos extremos climáticos.
Qual é a sua avaliação da Conferência de Lima e sua expectativa com relação a Paris, em dezembro?
Lima trouxe progressos incrementais. Embora exista a expectativa de algo maior em Paris, creio que seja realista não esperar uma revolução. Além disso, é preocupante a relativa diminuição recente dos preços dos petróleo e gás: se persistir, irá causar um inevitável aumento das emissões de gases do efeito-estufa.
Entrevista originalmente publicada no jornal Folha de S. Paulo