Planos, sonhos e possibilidade para a metrópole de 2030

Democratização da gestão, participação social e reforma política podem ser decisivas para que o Plano Diretor da capital paulista transforme antigos sonhos em projetos realizáveis nos próximos 15 anos.

Por Gisele Brito

São Paulo, a cidade que não para, completa 461 anos neste 25 de janeiro e ainda enfrenta o desafio de pensar e planejar o seu futuro, o que praticamente não ocorreu desde que surgiu, na área do velho Pátio do Colégio. Desta vez, no entanto, há expectativa de que o Plano Diretor Estratégico (PDE), legislação municipal aprovada no ano passado recheada de diretrizes para o desenvolvimento urbano nos próximos 15 anos, consiga nortear novas linhas gerais para esse caminho, acima das cores partidárias que possam vir a administrar o município nas três gestões que se sucederão até lá. Isso porque o plano teve apoio de amplos setores da sociedade, empresariais e populares, e do meio acadêmico. E seu pressuposto central parece ser consensual, inclusive entre os que fazem hoje oposição ao governo do prefeito Fernando Haddad (PT).

A maior cidade brasileira chegou a 11,9 milhões de habitantes em 2014, segundo estimativa do IBGE. Em 2000, eram 10,4 milhões. Em 2012, ainda de acordo com o instituto, concentrava 11,4% do Produto Interno Bruto (PIB) do país. Pouco mais da metade (52,5%) são mulheres. Um em cada cinco moradores tem menos de 15 anos e 13% têm mais de 60. Em 2030, a média de idade do paulistano, estimada pela Fundação Seade, subirá dos atuais 35 para 39 anos.

Há um século, a população se concentrava no alto de uma colina, num pequeno triângulo de ruas que hoje é chamado de Centro Velho. Para avançar desse perímetro, a cidade precisou vencer, ou destruir, barreiras naturais como declives e cursos d’água. O avanço mal planejado sobre os novos territórios é uma das origens da ausência de padrões mínimos de mobilidade, moradia e distribuição do emprego e qualidade paisagística. São Paulo, assim como todas as outras riquezas produzidas sob a lógica do capital, concentrou o que tinha de melhor para poucos.

Segundo expectativas para o fim do período contemplado no Plano Diretor, a região central deve ter mais moradores e menos carros. Será mais agradável para se viver, recuperando valor afetivo. Ainda que haja indicativos de que outras áreas devam se desenvolver, especialmente na zona leste, o centro expandido deve continuar a sintetizar a cidade, guardando parte fundamental da sua história e pulsando sua dinâmica econômica e cultural.

Entretanto, para o atual secretário de Cultura, Nabil Bonduki, nem a carência de moradias para a população mais pobre estará solucionada, nem as favelas terão desaparecido. “Mas gradativamente estarão sendo urbanizadas”, acredita Bonduki, que foi o vereador responsável pelo texto final do PDE, em 2013. “A velocidade com que isso se dará depende da prioridade que os governos derem para a questão. Em linhas gerais, condições legais para equacionar essa questão estão resolvidas.”

Mão invertida

A lei contém princípios opostos ao império do automóvel, cujo domínio ditado a partir da segunda metade do século passado hoje escancara como consequências a rotina de trânsito, que restringe a locomoção, e os problemas de saúde e mortes causados pela poluição ou por acidentes. Mudar esse paradigma é algo que ainda enfrenta resistências. “A elite econômica e parte significativa da classe média não aceitam bem se misturar com os mais pobres. O momento de implementação dessa nova lógica é difícil, pois a classe média tem força política e, embora aceite a tese do transporte coletivo, não está disposta a mudar seus hábitos. Afinal, um sistema eficiente de transporte coletivo ainda não está implantado”, afirma Bonduki, também urbanista e professor na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP).

O deslocamento no sentido inverso do habitual – periferia-centro-periferia – também pode ganhar força nos próximos anos. Três milhões de pessoas vão e voltam todos os dias, por exemplo, da zona leste para áreas centrais, e o aumento de postos de trabalho na região periférica se apresenta como perspectiva real a contribuir para essa mudança. O PDE define essa parte da cidade como um Polo Estratégico de Desenvolvimento Econômico, e desde janeiro do ano passado empresas interessadas em se instalar ali estão isentas de IPTU e recebem desconto de ISS, entre outras vantagens fiscais. A expectativa da prefeitura é que sejam criados 50 mil empregos nos próximos anos na região.

“Não é o suficiente para inverter totalmente o fluxo, mas vai acontecer uma transformação em Itaquera. O polo institucional, a instalação da Unifesp, tudo isso pode produzir grandes mudanças, inclusive impactos sociais negativos para população de baixa renda”, avalia o urbanista Kazuo Nakano, que ajudou a elaborar o anteprojeto do PDE. Entre os impactos negativos de que fala o urbanista estaria a pressão no preço dos imóveis na zona leste com a valorização da região, o que afasta a população mais carente. O antídoto previsto para isso no Plano Diretor é a implementação das Zonas Especiais de Interesse Social (Zeis). Nessas áreas, poder público e iniciativa privada devem construir habitações para a população de baixa renda.

Pressão fiscal

É nessa mesma ferramenta que estão depositadas esperanças de que o adensamento do centro contemple todas as classes sociais. No centro, entre as medidas que podem atrair moradores está a adoção de IPTU progressivo no tempo, que onera o imposto pago por proprietários que não cumprem função social, mantendo imóveis vazios. O mecanismo está previsto no Estatuto da Cidade, mas jamais havia sido aplicado. A atual administração começou a pôr em prática a lei e a listar imóveis que devem ser notificados na primeira etapa de um processo que dura no mínimo cinco anos, até que, em casos extremos, esses imóveis possam ser desapropriados. Para evitar a desapropriação, os notificados têm até um ano para apresentar um projeto para parcelar o terreno, realizar obras ou reformas e colocá-lo em uso. Caso contrário, o IPTU aumentará.

A pressão fiscal acontece em um momento em que o centro já passa por uma revalorização social e econômica, com diversos lançamentos imobiliários em curso, diferente do que aconteceu nos anos 1990, quando perdeu população e foi abandonado também pelo setor privado. A questão agora é como manter e trazer a população de baixa renda, já que os novos lançamentos chegam a custar R$ 12 mil pelo metro quadrado e vão até 50 metros quadrados. “Estou apostando nas Zeis no centro. Já temos práticas, experiências, e o mercado absorveu esse instrumento. Acho que vamos ter mais habitação no centro, inclusive para a classe média, e mais para habitação de interesse social”, avalia Nakano.

Ocupação do espaço

Morar no Largo do Paissandu, no centro, e trabalhar em Itaquera. Sair da estação Anhangabaú do metrô depois do expediente, parar no Largo da Memória e tomar um gole de água potável direto da fonte em frente ao obelisco, primeiro e mais antigo monumento da capital paulista. Parece ficção. Mas algumas portas já se abriram para que isso se realize. Quem sabe até 2030. Acesso a água potável em bica pública é um dos objetivos de um projeto iniciado no ano passado pelo Departamento de Patrimônio Histórico (DPH) municipal, de recuperação das fontes atualmente desativadas na região central, como parte das comemorações do bicentenário do obelisco.

No início do século 20, essas bicas abasteciam a população. Depois viraram peça ornamental. “A ideia é que se tornem espaços de convivência e demonstrem de maneira didática como lidar com a água. Pretendemos captar da chuva, usar soluções filtrantes, como plantas, e deixá-las adequadas”, explica a chefe da Seção Técnica de Monumentos e Obras Artísticas do DPH, Mariana Falqueiro. A iniciativa tem como parceiros pesquisadores da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e membros da sociedade civil. “A ideia prevê o envolvimento da sociedade e a recuperação do valor afetivo desse patrimônio. As pessoas não vão amar a cidade que as trata mal”, resume Mariana.

Para o coordenador da Promoção da Direito à Cidade na Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania, William Nozaki, os esforços da gestão Haddad tentam reorganizar o espaço público por meio de medidas estruturais. “O Plano Diretor é a grande sinalização dessa construção policêntrica. Desde a campanha, depois na elaboração do plano de metas, havia um diagnóstico de que as pessoas haviam melhorado de vida da porta para dentro”, diz. A melhora da porta para fora estaria associada ao olhar diferente para o espaço público, missão que se desdobrará em duas frentes.

Uma para provocar ações com impacto nos conflitos de ocupação de solo. Medidas como as faixas exclusivas de ônibus, as ciclovias e a notificação de imóveis que não cumprem função social da propriedade, cita Nozaki. A outra envolve ações pontuais. “É uma série de medidas que problematizam como o espaço público pode se tornar o espaço público dos diferentes. Como é que a gente rompe com essa lógica da cidade, essa lógica do fluxo, da passagem. A regulamentação dos parklets, os projetos do Centro Aberto no Largo do Paissandu, do São Francisco, o indicativo da desativação do Minhocão, projetos que a gente está tocando”, afirma.

Olhando pela janela de seu gabinete na Câmara Municipal na hora do rush, o vereador Police Neto (PSD) reflete sobre o que espera que seja diferente entre a paisagem atual e a que gostaria de ver: “É só você olhar a avenida (Nove de Julho) cheia de carros e a esplanada da principal praça da cidade (Vale do Anhangabaú) vazia. Era para as pessoas saírem do trabalho e quererem ficar ali. A cidade que estamos reconstruindo será feita para as pessoas. É doloroso para a maior parte da população escutar isso. As pessoas querem uma nova configuração urbana, mas não querem abandonar o conforto”, diz o parlamentar, que adotou a bicicleta como meio de transporte há cinco anos.

Consenso

O “nós” da frase é importante por sinalizar um consenso na inversão de prioridades. Correligionário do ex-prefeito Gilberto Kassab (PSD), atual ministro das Cidades, Police chegou a ser acusado de ser o “vereador das empreiteiras” durante a tramitação do Plano Diretor. “Tem de mostrar para o empresário que esses novos conceitos de cidade geram tanta riqueza quanto o atual.”

A aceitação do plano é assinalada pelo coordenador-executivo da Rede Nossa São Paulo, Maurício Broinizi Pereira, como essencial para que seu texto seja cumprido. “O PDE vai pegar quatro gestões, e é importante que seja respeitado, porque temos carência de planejamento. É importante que os partidos fiquem atentos e que ele seja executado, senão vamos continuar crescendo de maneira caótica”, afirma. “Todos os bairros precisam ter uma cesta básica de serviços públicos e privados. Para isso existem incentivos fiscais e investimentos diretos. Há muitos distritos que ainda não têm hospitais, bibliotecas”, observa.

Há perspectivas também para a diversificação e melhoria dos modais de transporte público. Em uma apresentação oficial de 2013, o Metrô, que responde ao governo estadual, projetava para 2030 uma malha aumentada dos atuais 79 para 340 quilômetros de extensão, com a expansão das linhas 2-Verde, 5-Lilás e 4-Amarela, além da criação de nove linhas novas. Isso caso o planejamento seja cumprido – o que esteve longe de acontecer nos últimos 15 anos.

No âmbito das responsabilidades municipais, o PDE prevê a expansão dos corredores de ônibus e da malha cicloviária. Apesar das críticas, feitas principalmente por motoristas e comerciantes que tentam preservar o espaço em frente a seus estabelecimentos para os carros estacionarem, Nakano acredita na priorização do transporte público como um processo irreversível. “Acho que nenhum outro prefeito vai se atrever a parar os investimentos nos corredores. A situação do trânsito já está tão difícil e a questão da mobilidade, tão presente no debate público, que ninguém vai querer parar os investimentos. Então acho que vamos ter mesmo uma oferta mais ampla de transporte. Corredor metropolitano, linhas de ônibus. A população deve absorver as ciclovias”, prevê o urbanista.

A sociedade acompanhou a elaboração do Plano Diretor e a pressão exercida foi essencial para a aprovação do texto. Ainda assim, não é no papel que estão depositadas as esperanças dos movimentos de moradia, os mais atuantes no processo. “Tivemos importância grande na elaboração do PDE por imaginar uma cidade diferente”, diz a coordenadora da União dos Movimentos de Moradia e integrante do Conselho Municipal de Moradia, Graça Xavier.

Mas ela mostra pouco otimismo. “As mudanças só vão acontecer com a participação da sociedade civil. E para isso é necessária uma reforma política de verdade, para que os vereadores não fiquem tão comprometidos com o setor imobiliário e possam de fato trabalhar para uma cidade inclusiva, com moradia, escola, creche”, avalia. “Sonhamos que não tenha gente morando na rua, principalmente no centro, onde há muitos prédios vazios que não cumprem função social, assim como não ter gente morando na beira de rios, córregos, alto de morros. Mas se as forças econômicas continuarem predominando sobre as leis e as pessoas, nada vai mudar”, alerta.

SERÁ POSSÍVEL?

Sair da estação Anhangabaú do metrô depois do expediente, parar no Largo da Memória e tomar um gole de água potável direto da fonte em frente ao obelisco, primeiro e mais antigo monumento da capital.

O QUE SERÁ DO MINHOCÃO?

Símbolo da política “rodoviarista” que marcou São Paulo a partir dos anos 1970, o Elevado Costa e Silva, o Minhocão, pode estar com os dias contados. O Plano Diretor propõe o debate na sociedade para que se decida seu destino após a redução do fluxo viário sobre nele. Duas propostas despontam: a derrubada e transformação em parque linear, nos mesmos moldes do parque High Line, em Nova York.

A adoção de qualquer uma das duas soluções propostas mudará a cara do centro e muito provavelmente, se nenhum cuidado for tomado, da população do entorno do eixo viário, que pode ser vítima de uma supervalorização do trecho, correndo o risco de ser expulsa pelo mercado. Talvez por isso, até agora nenhuma das duas propostas se destacou como favorita – nem sequer a desativação do tráfego de veículos no Minhocão é consenso.

MAIS METRÔ?

Em uma apresentação oficial de 2013, o Metrô, que responde ao governo estadual, projetava para 2030 uma malha aumentada dos atuais 79 para 340 quilômetros de extensão, com a expansão das linhas 2-Verde, 5-Lilás e 4-Amarela, além da criação de nove linhas novas. Isso caso o planejamento seja cumprido – o que esteve longe de acontecer nos últimos 15 anos.

CIDADE PARA AS PESSOAS

Olhando pela janela de seu gabinete na Câmara Municipal na hora do rush, o vereador Police Neto (PSD) reflete sobre o que espera que seja diferente entre a paisagem atual e a que gostaria de ver: “É só você olhar a avenida (Nove de Julho) cheia de carros e a esplanada da principal praça da cidade (Vale do Anhangabaú) vazia. Era para as pessoas saírem do trabalho e quererem ficar ali. A cidade que estamos reconstruindo será feita para as pessoas”

MAIS ARTE

Imagine a Rua 25 de Março fechada para carros. E ainda mais cheia de gente. Parte delas, louca para tirar fotos com Freddy Krueger. O personagem é interpretado por um dos artistas de rua mais antigos na região. No começo, ele enfrentava olhares atravessados. Comerciantes o viam como um problema. Agora, nessa 2030 “sonhática”, há um artista em cada esquina. Freddy divide espaço com estátuas vivas, músicos, pintores e outros performers.

Na São Paulo real de 2015, os que o criticam já não são maioria, acredita o ator Celso Reeks, integrante do projeto Artistas de Rua e “intérprete” do protagonista de A Hora do Pesadelo: “Os que reclamam são uma minoria que não consegue entender que aquilo leva também público para as suas lojas. Alguns reclamam com razão, porque há artistas que colocam o som em uma altura insuportável. Mas a 25 é uma rua saturada mesmo e há projetos para transformá-la em calçadão”. Em 2014, foi regulamentada a atividade de artistas no espaço público. Um site mantido pelos próprios interessados na atividade já conta com algumas centenas de cadastros. “Dentro da comunidade de artistas há uma tendência de as pessoas começarem a buscar as ruas. E também sair da burocracia, das restrições das casas de show, e estar em um ambiente mais acessível”, avalia o ator. “A arte serve para quebrar essa lógica de que a rua é só um espaço de passagem.”

Matéria originalmente publicada no portal da Rede Brasil Atual.

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