Por Vanessa Correa e Bruno Fávero
A vida que em décadas anteriores se esvaiu do centro de São Paulo está voltando.
A prova maior dessa tendência de reversão do êxodo, que poderia retroceder a degradação urbana, é a proliferação de empreendimentos residenciais e comerciais no miolo da cidade.
Várias gestões tentaram estratégias de repovoamento: de operações para atrair a atenção do mercado imobiliário a incentivos fiscais para empresas de tecnologia, passando por criação de equipamentos culturais como Sala São Paulo e Pinacoteca.
Ainda assim, a chamada "revitalização" teima em não chegar. O atual prefeito, Fernando Haddad (PT), também tem seu plano, embora use o termo "requalificação".
A ação mais ambiciosa da prefeitura para deixar a região central "segura, animada e atraente" é a reforma do vale do Anhangabaú.
Estimado em R$ 100 milhões, o projeto de reurbanização cria uma grande "área molhada", com fontes que podem ser ligadas e desligadas conforme o uso, ladeada por quiosques de comércio.
Mas a mudança, prevista para até 2016, divide urbanistas. A começar pela consultoria do projeto, a cargo do arquiteto dinamarquês Ian Gehl, alvo de crítica pelo fato de ser estrangeiro e supostamente não conhecer a fundo a realidade paulistana.
Gehl, por outro lado, assinou reformulações de espaços públicos em todos os continentes. É dele a reforma que converteu o Times Square Garden, em Nova York, em área exclusiva de pedestres.
Escala humana
Uma de suas principais premissas é retomar a "escala humana", que as cidades brasileiras abandonaram a partir dos anos 1950 para dar espaço aos automóveis e aos grandes edifícios.
Esguichos de água e quiosques seguem essa lógica: a água ajuda a concentrar pessoas na borda do espaço; os quiosques funcionam como nova fachada nas laterais.
A ideia é domar a área de escala monumental, cercada de prédios tão monumentais quanto, entre eles o Mirante do Vale, mais alto da cidade.
Para o arquiteto Álvaro Puntoni, um dos fundadores da Escola da Cidade, o centro "tem urgência" de algum tipo de atuação municipal para os espaços públicos, que estão "abandonados". A proposta, diz, "tem potencial para induzir outras transformações na região".
Já Eduardo Nobre, professor da FAU-USP (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo), diz não saber como a obra milionária poderia mudar a atual dinâmica do centro.
"Fazer intervenções menores, regularizar o comércio de rua, construir uma praça e estabelecer uma ligação entre o vale e o Theatro Municipal podem dar vitalidade maior ao Anhangabaú", contrapõe.
O urbanista Nestor Goulart Reis Filho, também da FAU, classifica o projeto de "perfumaria" perto dos problemas estruturais da região.
Um dos principais fatores de degradação do centro, diz o professor, é a obsolescência dos edifícios que, apesar da excelente arquitetura, não atraem moradores e escritórios por fatores como falta de garagens. Para complicar, emenda, a lei dificulta a readequação de prédios velhos.
Sobre isso, a prefeitura diz que a revisão do Código de Obras, neste ano, deve inserir novidades que facilitem a atualização dos edifícios do centro.
Outra crítica da proposta da prefeitura é Rosa Klias, autora do projeto atual do Anhangabaú, que foi reformado em 1990.
Ela, que fez o desenho em parceria com Jorge Wilheim (um dos maiores urbanistas paulistanos, morto em 2014, ao 85), diz que é "absurdo um espelho-d'água numa cidade que não consegue manter nem uma cascatinha".
O secretário de Desenvolvimento Urbano, Fernando de Mello Franco, admite que a obra não é suficiente para a "requalificação do centro", mas argumenta que ela é necessária e faz parte de "um conjunto de ações que se articulam" na região.
Entre elas estão medidas de mobilidade, com ciclovias e reforma de calçadões, e de moradia de baixa renda via adequação de prédios velhos.
Mas o mais importante, ele diz, é o repovoamento da região, que já está ocorrendo.
Elitização
Até os anos 1960, o centro era mesmo o "centro". Reunia as lojas refinadas, as sedes das maiores empresas, os endereços glamourosos e o grosso da vida cultural.
A partir dos anos 1970, quando grandes companhias se mudaram para a avenida Paulista, e, depois, para a Faria Lima (1990) e a Berrini (2000), a região perdeu um terço dos habitantes.
O processo em curso de reocupação promete, mas também preocupa. Urbanistas temem as consequências da "requalificação" para quem tem baixa renda e já habita essa parte da cidade, agora elevada à bola da vez em folhetos imobiliários.
"Precisamos nos perguntar qual é a classe social que está indo agora para o centro e se alguma classe social que já estava lá corre o risco de ser expulsa pelo aumento nos preços", diz Nobre.
O receio é que a revitalização repita aqui o que ocorreu em bairros antes degradados de outras cidades do mundo -como Shoreditch, em Londres, e Brooklyn, em Nova York.
Nesses locais, a chegada da classe média alta, após a ocupação pioneira por artistas, gerou alta nos aluguéis e serviços, empurrando para fora a população pobre.
Tal processo é conhecido pelo anglicismo "gentrificação" (vem do termo "gentry", nobreza, e poderia ser traduzido como "elitização").
Gestão do Vale
Mais controverso que o projeto de espelho-d'água é a proposta da prefeitura de um conselho gestor para a área, nos moldes do que é feito hoje em parques fechados.
A Associação Viva o Centro, que já se manifestou contra a obra no Anhangabaú por não considerá-la prioridade, apoia, entretanto, uma estratégia de gestão do espaço.
A prefeitura diz que o local será mais controlado.
Com o projeto implantado, surgirá uma barreira real a eventos espontâneos: as fontes obstruem a área livre do parque e não podem ser desativadas sem consulta ao órgão responsável pela gestão.
"O Anhangabaú é um dos poucos grandes espaços de manifestação da cidade, essa é sua grande vitalidade. Se colocar espelho-d'água, as pessoas serão desestimuladas a protestar", diz Nobre.
De fato, além de playground de skatista e dormitório de sem-teto, o local é palco de eventos tão díspares quanto as aulas do Movimento Passe Livre ou a formatura de oficiais da PM. Lá também ocorreu a passeata das Diretas Já, em 1984, com 1,5 milhão de pessoas.
Curioso que o debate sobre a recuperação da região tenha como alvo o Anhangabaú, espaço cuja transposição, a partir da criação do viaduto do Chá, em 1892, foi justamente o primeiro passo da cidade rumo sudoeste, deixando o centro para trás.
Matéria originalmente publicada no jornal Folha de S. Paulo