Há 500 grandes consumidores de água da Sabesp que pagam preços excepcionalmente bons. Eles têm um contrato que premia o consumo, quanto maior ele for, menor será o preço pago por litro de água. É a lógica contrária à aplicada ao restante dos usuários. Mimar os melhores clientes é uma estratégia comum no mundo empresarial, exceto pelo fato de que São Paulo atravessa a pior crise hídrica em 84 anos.
Nessa lista, com data de dezembro de 2014, há condomínios de luxo, bancos, hospitais, shoppings, igrejas, indústrias, supermercados, colégios, clubes de futebol, hotéis e entidades como a Bolsa de Valores de São Paulo, a concessionária da linha 4 do Metrô, a Companhia Paulista de Trens Metropolitanos ou a SPTrans.
Alguns clientes [consultar lista], como o shopping Eldorado, consomem por mês cerca de 20.000 m3, o mesmo que mais de 1.200 famílias de quatro membros juntas, considerando que cada indivíduo gasta 130 litros por dia. O shopping, que recebe 1,8 milhão de visitantes por mês, não é o maior consumidor, e há quem gasta até três vezes mais, como a fábrica de celulose Viscofan no Morumbi, a campeã de consumo na lista à qual teve acesso EL PAÍS.
Mas o consumo mensal desses clientes premium pode ser ainda maior porque o levantamento, que foi enviado pela Sabesp à CPI que investiga os contratos da companhia com a Prefeitura, está incompleto. Na lista, que contempla 294 clientes que assinaram seus contratos a partir de junho de 2010, há poucas indústrias. Alvo principal desses contratos, o setor industrial responde por cerca de 40% do consumo de água no Estado, conforme os dados do Departamento de Águas e Energia Elétrica de São Paulo (DAEE).
O atrativo dos contratos é que todos estes clientes pagam menos do que o valor de tabela aplicado para as atividades comerciais e industriais que desempenham. Para o shopping Eldorado, por exemplo, cada mil litros de água custam 6,27 reais, enquanto os clientes do setor comercial que não assinaram esse contrato pagam 13,97 reais. Um desconto de mais de 55%. Já a Viscofan se beneficia de um desconto de 75%, pois a tarifa aplicada é de 3,41 reais para cada mil litros, quando, caso não tivesse o contrato, deveria pagar 13,97 reais.
Entre os exemplos há o caso do Hotel Hilton, na avenida Nações Unidas, no distrito financeiro de São Paulo. O mega-hotel, que mantém aberto um spa e um centro fitness24 horas por dia, além de uma piscina com vista panorâmica, consome por mês o mesmo que 751 famílias de classe média com quatro membros (11.722 m3/mês). O hotel paga 6,76 reais por cada metro cúbico, quando a tarifa comercial é de 13,97. Neste caso, o valor é menor, inclusive, do que o pago por uma família de quatro membros que paga a tarifa comum (7 reais/m3).
Dos três exemplos citados apenas o shopping respondeu aos questionamentos da reportagem. O empreendimento afirma que toma medidas compensatórias diante de seu alto consumo com o objetivo de reduzi-lo em 15%. O hotel Hilton não havia respondido até a publicação desta reportagem.
A lista secreta
Os contratos, que incluem grandes descontos no fornecimento de água e tratamento de esgoto, foram desenhados para fidelizar os que usam no mês pelo menos 500 metros cúbicos – ou 500.000 litros– o que equivale ao consumo médio mensal de 128 pessoas. Mas o objetivo da Sabesp com essa estratégia, implementada em 2002, não é só fidelizar. A companhia quer impedir que seus clientes comerciais e industriais optem pelo uso de poços privados, conforme afirma emseu último relatório enviado aos investidores.
Esta lista de clientes era secreta até agora, pois a Sabesp se negou a divulgá-la com o argumento de proteger suas relações comerciais e a privacidade de seus clientes. A companhia também não esclareceu as questões enviadas pela reportagem. A falta de transparência e a vigência dos acordos e suas condições provocam críticas dos especialistas, pois, à beira de um racionamento, a companhia manteria uma política de incentivo a alta de consumo.
“Nesta crise, deveriam valer para todos as mesmas tarifas e condições de uso da água, porque o acesso à água daqui pra frente não pode mais ser visto como um privilégio de quem têm dinheiro ou contrato específico”, afirma Carlos Thadeu, gerente técnico do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec).
O consumo médio destes 294 clientes representa 1,23% do total do município, segundo cálculos da Sabesp incluídos no documento enviado aos vereadores. O percentual poderia aumentar expressivamente se forem somados os 206 consumidores mais antigos que a companhia omitiu na lista, como as grandes indústrias.
O corregedor-geral da administração estadual, Gustavo Ungaro, determinou no fim de janeiro que a companhia de saneamento entregue em até 30 dias os contratos de demanda firme porque “não há como negar interesse coletivo" da informação, "quer por envolver a atuação de uma sociedade de economia mista quer por ter por objeto a administração de um bem público: a água.” Ungaro analisava recurso da Agência Pública, que em dezembro pediu duas vezes os dados à Sabesp por meio da Lei de Acesso à Informação, mas a empresa se negou a dá-los.
Medidas de contenção
Até março de 2014, o modelo dos contratos incentivava ainda mais o consumo. Até a data, ele poderia ser comparado ao de um pacote de telefonia e internet, em que o cliente paga um valor cheio por um volume (de dados ou de água) acordado previamente. Se usava menos água, portanto, pagava o mesmo valor, mas se ultrapassava a quantidade contratada pagava uma diferença.
Com o agravamento da crise hídrica, a Sabesp modificou essa obrigatoriedade de consumo mínimo, liberou os clientes para usarem fontes alternativas de água e os incluiu no programa de multas pelo aumento de consumo até os mananciais se recuperarem.
Com essa liberação, 70% dos clientes adotaram fontes alternativas e reduziram seu consumo com a companhia, segundo o documento enviado à Câmara. É por isso que na lista aparecem vários exemplos de empresas cujo consumo caiu abaixo dos 500m3 exigidos para assinar este tipo de contrato.
A companhia, porém, não inclui seus clientes fidelizados no Programa de Redução de Consumo – que premia com 30% de desconto quem economizar 20%. Assim, uma grande redução do consumo não significaria necessariamente um grande alívio na conta desses clientes.
Matéria originalmente publicada no portal do El País