Proposta de construção de sistema cicloviário feita pela CET e datada de 1981previa rede de 174 quilômetros de faixas para bicicletas.
Por Leonardo Fuhrmann
Autora da ação que pretende o fim das obras das ciclovias na cidade de São Paulo e a destruição das existentes ou em obras, a promotora de Justiça Camila Mansour Magalhães da Silveira garante não ser contrária a essa estrutura urbana. Ela argumenta que o problema é a falta de planejamento e estudo de impacto e de consultas públicas antes da construção da faixa exclusiva, compartilhada com pedestres ou segregada. E alega que chegou a pedir os documentos para a Prefeitura, mas não foi atendida. A promotora chegou a justificar que um dos motivos para sua ação era garantir a segurança dos usuários das ciclovias, pois muitas delas apresentam buracos e obstáculos físicos em seu traçado.
A liminar que suspendia as obras, exceto da Avenida Paulista, foi suspensa pelo presidente do Tribunal de Justiça, José Renato Nalini. É a segunda decisão dele que garante a construção e manutenção das ciclovias. Ele já havia suspendido uma liminar dada a um colégio particular, que obrigava o poder público a alterar o trajeto de uma ciclovia para retirá-la da rua onde fica a escola. Para Nalini, o argumento de “falta de estudo prévio de impacto viário”” não é suficiente para a interrupção, ainda mais antes de ouvir a Prefeitura sobre o tema.
Além da administração municipal, urbanistas e ciclistas contestam a promotora. Doutora em Planejamento Urbano pela USP, a arquiteta Maria Ermelina Brosch Malatesta afirma que os estudos para a implantação de ciclovias na cidade começaram em 1980. O primeiro trajeto foi proposto em dezembro de 1980, e ligaria o Parque do Ibirapuera à Cidade Universitária. Em fevereiro do ano seguinte, foi sugerida a construção de 174 quilômetros, espalhados em 14 setores, que cobririam boa parte da cidade e seriam interligados entre si. “O que está sendo construído é uma evolução do que vinha dessa época”, afirma.
Maria Ermelina lembra que, em 1982, era proposta a inclusão de ciclovias no plano de avenidas então apresentado, que utilizava áreas de leito de rios para a expansão da estrutura urbana. A pista exclusiva, no entanto, jamais saiu do papel. Naquela época, a construção de ciclovias provocaria um aumento irrisório no custo das obras. Ela é autora de um documento sobre a história dos estudos da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) acerca da implantação de ciclovias. O texto foi publicado na gestão de Gilberto Kassab (PSD), antes do plano de expansão de Fernando Haddad.
Cicloativista, a jornalista Renata Falzoni separa o planejamento em dois pontos: a criação de uma rede interligada com outros modais e que permita o acesso do ciclista com segurança de uma região para outra da cidade; e a execução das obras em si, em cada parte do sistema. “As rotas foram delineadas e depois a infraestrutura vai precisar ser aperfeiçoada. Alguns traçados podem ser contestados. Mas tem muita gente que critica o planejamento sem entender de ciclovias, como os que apontam a existência de uma árvore no trajeto como um problema”, afirma. Para ela, muitas imagens de ciclovias na periferia induzem as pessoas que não conhecem as regiões a erro. “Falam de lugares onde foram criadas ciclovias e não existiam calçadas, mas não é isso. Foram criadas, na verdade, calçadas compartilhadas para ciclistas e pedestres”, defende.
Os ciclistas rebatem ainda as afirmações de que a população não foi consultada sobre a construção das faixas para bicicletas. O diretor-geral da Ciclocidade, Gabriel Di Pierro, contou mais de 170 audiências públicas entre 2013 e 2014 sobre o assunto. Sua criação também consta no Plano Diretor Estratégico, no Plano de Metas, e fez parte do programa de governo de Haddad. A aprovação às ciclovias, segundo diferentes pesquisas, varia entre 66% e 84%. Um levantamento da Rede Nossa São Paulo, em parceria com o Ibope, mostrou que 26% dos paulistanos que não usam a bicicleta como meio de transporte passariam a usar caso fossem construídas mais faixas exclusivas. Outros 26% afirmaram que passaria a usá-la se houvesse maior segurança para os ciclistas.
Livre-docente pela USP e integrante do Conselho da Cidade, o urbanista João Sette Whitaker afirma que as ciclovias estão sendo construídas basicamente sem tirar espaço da circulação de carros. “Muitas delas tiram o espaço de estacionamento. É parte de um processo que foi feito em outras cidades, como Paris e Amsterdã, e a resistência sempre veio do mesmo grupo, uma classe média alta de bairros nobres que usa o automóvel até para deslocamentos ínfimos dentro do bairro”, diz.
Líder do movimento Bicicleta para Todos, Daniel Guth esteve no Ministério Público para apresentar a visão dos ciclistas à promotora. Dias depois, ele e outros cicloativistas entraram com uma representação contra ela na Corregedoria do MP. “Ao propor a destruição de ciclovias, ela coloca em risco a vida de todos os que pedalam na cidade. O fato de a bicicleta perder espaço no trânsito reforça a violência já existente contra o ciclista nas ruas”, argumenta. A Associação Paulista do Ministério Público reagiu e divulgou uma nota de apoio à colega. Para a entidade, ela “agiu em cumprimento de seus deveres legais e constitucionais, com arrimo em sua independência funcional”.
Congresso discute isenlção de IPI para bicicleta desde 2009
A ação contra as ciclovias paulistanas mobilizou movimentos de ciclistas pelo país e até no exterior. Segundo os organizadores, em pelo menos 24 cidades brasileiras e outras 18 espalhadas por 13 países foram organizados atos, de diversos tamanhos, em solidariedade aos ativistas paulistanos. Em São Paulo, os cerca de 7 mil manifestantes organizaram comboios de todas as regiões da cidade para irem à Praça do Ciclista, na Avenida Paulista, local da manifestação.
A avenida, que é um símbolo da cidade e costuma ser ponto de encontro de manifestações diversas, tem significado especial para os cicloativistas. Por conta de atropelamentos, a via é considerada proporcionalmente o local mais perigoso da cidade para os ciclistas. Em seus pouco mais de dois quilômetros, as chamadas ghost bikes marcam os ciclistas que perderam a vida nela. Esses monumentos urbanos são bicicletas propositalmente danificadas e pintadas de branco em homenagem a quem morreu quando pedalava. Costumam ser colocadas em postes ou calçadas no local do acidente. Por isso, a construção do espaço segregado é considerada não só uma obra de alto valor simbólico, como fundamental para a segurança do paulistano que pedala.
A organização de atos em solidariedade se deve a grupos organizados de forma horizontal como o Bicicletada e o Massa Crítica, que se comunicam por redes sociais. “Conseguimos uma mobilização semelhante em 2011, depois que um motorista avançou em uma manifestação em Porto Alegre e atropelou diversos ciclistas”, recorda-se Henrique Espírito Santo, estudante que faz parte do grupo. O problema se repetiu na sexta-feira em Fortaleza (CE).
Mais do que discutir a situação de São Paulo, os protestos também mostram uma preocupação com o espaço para bicicletas no trânsito e as discussões sobre a mobilidade urbana. Ativistas e urbanistas lembram que a bicicleta só foi oficialmente incorporada em 1998 como meio de transporte no Código de Trânsito. De lá para cá, as iniciativas em favor do uso da bicicleta podem ser consideradas pontuais. O Plano Nacional de Mobilidade Urbana, de 2012, além de dar prioridade ao transporte público em relação ao individual, também ressalta a preferência ao veículo não motorizado. Mesmo assim, são poucas as políticas públicas para o modal bicicleta.
O Ministério da Educação, por exemplo, incluiu em 2010 a bicicleta no projeto Caminho da Escola, que pretende facilitar o transporte de alunos. O plano prevê ainda o apoio a prefeituras para a compra de lanchas e ônibus com esse fim. Segundo o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), a ação foi concebida após estudos internos mostrarem que crianças percorrem a pé, diariamente, de três a 15 quilômetros para chegar à escola ou ao ponto onde passa o ônibus escolar. Só em 2011, foram entregues mais de 6,4 mil bicicletas para estudantes.
Ano passado, o movimento Bicicleta para Todos, que reúne mais de 200 empresas e entidades ligadas ao setor, entregaram um manifesto ao Congresso pela desoneração do IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) para a produção e importação de bicicletas e seus acessórios. Atualmente, esse imposto é de 10,4%. A discussão veio na época em que o governo reduziu a cobrança para veículos automotores. A carga tributária dos carros somava 32% e passava de 40% no caso das bicicletas.
O então senador Inácio Arruda (PCdoB-CE) apresentou emendas com esse fim a medidas provisórias que tramitavam no Legislativo, mas sem sucesso. Ele e o senador Paulo Paim (PT-RS) apresentaram projetos de isenção em 2009. Na Câmara, tramita um projeto com o mesmo objetivo de autoria do deputado Felipe Bornier (PSD-RJ). A proposta foi aprovada na Comissão de Finanças na legislatura passada e desarquivada a pedido do deputado Sarney Filho (PV-MA) no início do atual mandato. Uma das pressões contrárias ao projeto curiosamente viria do principal fabricante de bicicletas em território nacional, a hoje multinacional Caloi. Caso a medida fosse aprovada, a empresa perderia as vantagens fiscais em relação aos concorrentes, porque produz na Zona Franca de Manaus (AM).
Matéria originalmente publicada no portal Brasil Econômico