Por Valor Econômico
Degraus, inclinações, remendos, buracos, piso escorregadio, obstáculos de todo o tipo – de bancas, postes, raízes e árvores a estacionamento para carros. O programa anunciado em maio pelo prefeito Fernando Haddad (PT) de construir e renovar 1 milhão de metros quadrados (o equivalente a 700 quilômetros) de calçadas na cidade de São Paulo não vai resolver de vez os problemas dos passeios públicos paulistanos. Até porque São Paulo tem, segundo estimativas, cerca de 35 mil quilômetros de calçadas – sem contar as ruas não oficiais e os locais cujo entorno ainda é de terra – e a manutenção é, por lei, responsabilidade do dono do imóvel. Mas, se for bem feito e de forma rápida, o plano, segundo pedestres e especialistas em urbanismo, poderá criar a cultura necessária para o cuidado com o passeio público.
De acordo com a prefeitura, o programa deverá beneficiar a população de forma geral, mas em especial as pessoas com deficiência e mobilidade reduzida, que em São Paulo somam 2,7 milhões de cidadãos, segundo o Censo de 2010 do IBGE. "É um projeto inédito de começar um trabalho de recuperação em sintonia com o nosso plano de mobilidade, que prioriza o transporte público individual não motorizado e os pedestres", afirmou o prefeito Haddad no lançamento do projeto.
O investimento, previsto em R$ 40 milhões, será aplicado proporcionalmente à demanda identificada por 28 subprefeituras, após estudos desenvolvidos com a participação dos conselhos populares. A Capela do Socorro, na zona sul da cidade, vai receber o maior número de ações: terá 244 mil novos metros quadrados de calçadas. Outras grandes intervenções acontecerão no Itaim Paulista (112 mil metros quadrados), Parelheiros (84 mil) e Ermelino Matarazzo (80 mil). De acordo com a prefeitura, as obras foram iniciadas e devem ficar prontas ainda neste ano.
Do total de recursos a serem desembolsados pela prefeitura, 60% vão atender prioritariamente os locais onde hoje não existe calçamento, situados em regiões socialmente vulneráveis. Os 40% restantes serão utilizados na reforma de passeios públicos atualmente em alto grau de degradação. Embora a manutenção das calçadas seja obrigação do cidadão, 85% das obras previstas no programa acontecerão, de acordo com a Secretaria de Coordenação das Prefeituras, em logradouros particulares.
"A ideia é seguir o que determina a legislação", explica Marianne Pinotti, titular da Secretaria da Pessoa com Deficiência e Mobilidade Reduzida, uma das mais entusiasmadas com o programa.
A lei 15.733, de 2013, prevê multa (de R$ 300,00 por metro linear) para o dono do imóvel cuja calçada esteja em desacordo com a legislação e amplia para 60 dias o prazo para que ele corrija as irregularidades. "Se fizer o reparo, a multa cai, porque o objetivo não é arrecadar; é ter o passeio arrumado", explica a secretária. Se não fizer, a prefeitura fará e mandará a conta. "Foi uma mudança lógica na lei, e esperávamos que estimulasse a conservação, mas isso ainda não acontece, embora seja uma questão de cidadania", diz a secretária.
Para Marcos de Souza, integrante da ONG Mobilize Brasil, o programa anunciado é bom, mas tímido, diante do tamanho da cidade e dos problemas. "Mas a prefeitura tem limitação de orçamento. Se conseguir fiscalizar os passeios irregulares e fizer calçadas onde a concentração de pessoas é maior, criará uma cultura que poderá promover uma revolução na cidade" diz ele.
A ONG acompanha a situação brasileira das calçadas de perto desde 2012, quando iniciou uma campanha sobre o tema por causa de sua importância para a mobilidade urbana no país: segundo estudos do IBGE nada menos do que 30% das viagens cotidianas dos brasileiros são feitas a pé, seja porque as distâncias são curtas seja por falta de recursos.
Apresentado em 2013, o resultado do levantamento, que analisou características das calçadas em 198 pontos importantes de Porto Alegre, Curitiba, São Paulo, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Goiânia, Brasília, Salvador, Fortaleza, Natal, Recife e Manaus, foi preocupante: em uma escala de zero a 10, a nota média brasileira das calçadas ficou em 3,6. A nota aceitável, segundo Souza, é 8.
A ONG continua monitorando o tema e promovendo atividades que estimulem as prefeituras a fazerem seu plano de mobilidade. A boa notícia é que o número de cidades que vem incluindo programas de melhoramento e renovação das calçadas vem crescendo. Assim como São Paulo, Teresina (PI), Maringá e Londrina (PR) e Salvador (BA) têm iniciativas que incluem o tema calçadas dentro de seu plano de mobilidade. Em São Paulo, segundo a secretária Marianne Pinotti, o Plano de Metas prevê tornar acessíveis até o final da gestão outros 850 mil metros quadrados. Deste total, 112,5 mil foram entregues em 2013 e 171,2 mil, em 2014. Até o fim deste ano serão mais 100 mil, que atualmente estão em fase final de liberação de recursos para as obras.
Projetos pretendem aprimorar o ambiente urbano
Caminhar por calçadas planas, iluminadas, com bom espaço para circulação, vegetação e equipamentos adequados, bem posicionados e bem cuidados é sonho de qualquer pedestre. Imagine agora se, além disso, o passeio tiver um estilo de construção sustentável, com piso permeável, que hidrata o solo e um sistema de escoamento para que a água das chuvas corra para os reservatórios, ajudando a combater enchentes e a crise hídrica da cidade. Autor do ambiente "Se essa rua fosse minha", em exposição na Casa Cor, em São Paulo, o arquiteto e paisagista Benedito Abbud diz que um espaço assim é não só possível como pode melhorar muito a mobilidade e a qualidade do ambiente urbano.
O projeto Calçada Viva, de Benedito e Felipe Abbud, prevê vegetação nas chamadas áreas de serviço (junto aos muros); faixa de circulação construída de piso permeável – placas porosas desenvolvidas para absorver 1 litro de água da chuva por segundo, que podem ser assentadas sobre um sistema de coleta de água para um reservatório temporário – acessibilidade para pessoas de diversas faixas etárias e necessidades de locomoção; mobiliário com design e funcionalidade adequados, além de pista de caminhada e corrida, equipamentos para ginástica e alongamento. "Resgatamos e apresentamos diversos conceitos, como o das calçadas técnicas, que diminuem a poluição visual por serem construídas sobre galerias no subsolo, por onde passam fiações de rede elétrica, TV, fibras óticas, redes de água e esgoto – o que evita o quebra-quebra de pisos que as concessionárias desses serviços têm de fazer e depois remendar."
Mão de obra e tecnologia para tudo isso tem. "As pessoas só precisam de incentivo fazer", diz o arquiteto. Para ele, o ponto de partida está na mudança de hábito. "As pessoas entendem que as calçadas são a continuidade de seus terrenos e se esquecem de que são espaços públicos, sujeitos a muitas necessidades e a uma legislação que nem todos conhecem", argumenta. Abbud cita o exemplo da Colômbia, onde o poder público fez um grande manual que obriga empresas a fazerem peças dentro de padrões preestabelecidos. "As pessoas compram as peças que preferirem (dentro do padrão) da empresa que quiser. Isso já organiza, dá parâmetros."
A realidade observada desde 2006 em 35 cidades brasileiras pela rede de pesquisa Quadro do Paisagismo brasileiro (Quapá-SEL) da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU-USP) não deixa dúvidas de que o problema é sério e tem origem não só no descaso do morador como na cultura do país, que tende a reduzir o espaço do pedestre para ampliar o espaço dos veículos. "Fazemos debates, fóruns, oficinas de conhecimento em cidades de médio e grande porte, observando vários aspectos do ambiente urbano, incluindo as calçadas – as quais são avaliadas de acordo com vários critérios como larguras, e materiais utilizados na construção", explica o professor Eugênio Fernandes Queiroga, vice-coordenador do Lab Quapá.
Para melhorar o quadro de deterioração retratado nas pesquisas, não faltam recomendações. Para novos loteamentos, por exemplo, a orientação é que as calçadas tenham largura compatível com sua hierarquia viária. Nas ruas locais deveriam ter 3 metros de largura e nas de maior trânsito, 5 metros de largura, o que facilita a circulação. "Isso já acontece em algumas cidades médias do interior de São Paulo, por exemplo."
Prefeituras aumentam programas de acessibilidade
A preocupação com acessibilidade no Brasil vai aos poucos ganhando espaço. Esse avanço da cidadania está sendo progressivamente verificado por meio de investimentos tanto do poder público quanto da iniciativa privada.
Em Curitiba, 93% da frota de ônibus já é acessível a pessoas com alguma deficiência física e há grande quantidade de outros equipamentos e dispositivos implantados pela prefeitura para favorecer a mobilidade desse público. Não é assim, contudo, na maioria das cidades brasileiras: numa das últimas pesquisas sobre o assunto, feita pelo Senado em 2013 (Condições de Vida das Pessoas com Deficiência no Brasil), quase 70% das 1007 pessoas com deficiência entrevistadas afirmaram que só uma minoria de prédios públicos está adaptada a elas.
O indicador foi praticamente o mesmo em relação a estabelecimentos comerciais, enquanto para ruas e calçadas a pesquisa indicou que 60% não estão adaptadas.
Apesar disso, exemplos notáveis que mostram essa evolução estão surgindo por todo o país, segundo o arquiteto Robson Gonzales, sócio da empresa Arpa, especializada em projetos desse tipo.
O tema, segundo ele, ganhou força a partir de 1988, quando a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) publicou as primeiras normas para orientar arquitetos e engenheiros: "Além de termos normas para tudo, a acessibilidade evoluiu bem, e já encontramos até peças de teatro com tradução em Libras (Linguagem Brasileira de Sinais), o que dez anos atrás era impensável."
Entre os bons exemplos de avanço da acessibilidade ele cita os estádios construídos para a Copa do Mundo e o bairro de Vila Mariana, em São Paulo, que concentra hospitais e entidades de atendimento a pessoas com deficiência como AACD e Apae: piso tátil, calçadas acessíveis e sinais de trânsito com alerta sonoro estão entre os dispositivos implantados na área pela Prefeitura de São Paulo.
No censo de 2010, observa o arquiteto, o IBGE registrou um total de 46 milhões de pessoas com algum tipo de deficiência, e boa parte dessas pessoas tem disponibilidade para atividades de lazer e até de turismo: "Essas pessoas querem viajar, passear, se hospedar", diz.
O município de Socorro, no "Circuito das Águas" paulista, apostou nesse público e foi mais do que bem-sucedido, afirma o diretor de Turismo Acácio Zavanella. Em 2002, recorda ele, havia apenas cinco hotéis e pousadas, que hoje são 51; no mesmo ano, eram somente sete restaurantes e hoje são 56. "Começamos em 2005 com uma iniciativa da organização Aventureiros Especiais, apoiada pelo Ministério do Turismo, adaptando dez esportes de aventura para pessoas com deficiência", conta Zavanella.
Os principais foram o rafting e uma tirolesa que tem um quilômetro de extensão, tão longa que termina no município de Bueno Brandão, em Minas, diz Zavanella. Mesmo tetraplégicos conseguem utilizá-la, fazendo o trajeto deitados. A partir de 2007, acrescenta, prédios públicos e estabelecimentos comerciais começaram também a implantar recursos de acessibilidade, incluindo rampas no lugar de escadas, placas e cardápios em Braille e banheiros adaptados, tornando a cidade uma das quatro mais acessíveis do Brasil segundo pesquisa de 2013 do Ministério do Turismo, ao lado de Curitiba, Rio e São Paulo.
Na capital paulista, o esporte acessível é apoiado pela Secretaria dos Direitos da Pessoa com Deficiência com implantação de "academias", com equipamentos de musculação adaptados: já foram entregues 132 das 200 que devem estar prontas até o fim do ano, uma delas no Parque da Água Branca.
Mas é em outro parque, o Villa Lobos, quase seis vezes maior (732 mil m2), que se pode ver mais recursos de acessibilidade. A arquiteta Ana Burjato, da Secretaria Estadual do Meio Ambiente, que participou do projeto para finalizar a construção e implantar acessibilidade no parque, conta que foi preciso superar barreiras como canaletas e degraus em muitos pontos. As canaletas de drenagem, antes pintadas de verde, receberam tinta amarela, tornando-se orientação para os deficientes visuais, enquanto as rampas foram feitas com inclinações sempre inferiores a 5% (elevação de cinco metros a cada cem percorridos).
Em Curitiba, a prefeitura vai iniciar a implantação de brinquedos acessíveis como esses nos parques da cidade, segundo a titular da Secretaria dos Direitos da Pessoa com Deficiência, Mirella Prosdócimo. Entre as novidades, ela destaca a entrada de 20 táxis "compartilhados" na frota, que podem embarcar cadeirantes por meio de uma rampa na parte traseira.
Matéria publicada originalmente no Valor Econômico.