Neste domingo, a principal via de São Paulo ganha uma faixa exclusiva para bicicletas, colocando a cidade no mapa mundial da mobilidade.
Por Ana Chiavegatti e Ingrid Matuoka
“O cartão-postal de São Paulo agora será também o cartão-postal da bicicleta”. A frase do consultor em mobilidade Daniel Guth resume a importância da inauguração dos 2,7 km de ciclovia na avenida Paulista, neste domingo. A oposição à ciclovia na Paulista –e às demais da cidade– foi grande. Parte dos motoristas paulistanos e setores mais conservadores da sociedade, da mídia e da Justiça foram contrários à sua implementação –muitas vezes calcados em argumentos partidários, pelo fato das ciclovias serem uma vitrine da gestão do petista Fernando Haddad.
O movimento de São Paulo segue atendência mundial de políticas públicas de urbanismo e mobilidade mais racionais e coloca as ciclovias de vez no dia-a-dia dos paulistanos. “É uma ciclovia nacional, e significa uma enorme conquista, especialmente pela resistência fútil e desesperada daqueles que são contra a estrutura cicloviária”, diz a cicloativista Renata Falzoni.
Renata, que também é jornalista, enxerga ainda uma carga de preconceito na reação às mudanças: “por causa da violência, fruto da desigualdade social, as pessoas acham que estarão mais seguras dentro de seus carros. Mas como elas vão sentir os benefícios das bicicletas sem jamais usá-las? Por meio de seus filhos. Essa geração será substituída por quem gosta das bikes”.
Daniel Guth também acredita que bicicletas na rua significam mais do que parecem. “Ela discute a vida em sociedade, enfrenta as questões de disparidades sociais, carrega em si um conteúdo revolucionário”.
O consultor elenca uma série de benefícios para a vida das pessoas, como a união do prazer à atividade física e a economia gerada. “É um jeito de economizar com transporte, e pode ser uma ferramenta de trabalho importante para vendedores e transportadores”.
Segundo o IBGE, cerca de 1/3 dos que se utilizam da bicicleta como meio de transporte no Brasil tem renda familiar de até 600 reais e outros 40%, de até 1.200 reais.
"A ciclovia é muito importante porque cria demanda. Ela atrai quem ainda não utiliza a bicicleta no trânsito por medo do desrespeito dos motoristas. Com uma estrutura dedicada, o cidadão se sente mais seguro", afirma Carlos Aranha, responsável da Rede Nossa São Paulo por acompanhar o desenrolar das políticas cicloviárias da cidade.
Pólo de acidentes
Em 2012 a Paulista liderava o ranking da CET, a Companhia de Engenharia do Tráfego, como a região mais perigosa para se pedalar. "A decisão de fazer a ciclovia da Paulista no canteiro central tem por objetivo garantir a segurança do ciclista naquele eixo" explica o secretário municipal de Transportes Jilmar Tatto.
A inovação pode representar o fim das tragédias que marcaram a Paulista nos últimos anos, como as mortes dos ciclistas Marlon Moreira, Juliana Dias, Márcia Prado, e o atropelamento de David Santos, que perdeu um braço.
A já famosa ciclovia da avenida faz parte do Plano de Metas 97, anunciado em junho de 2014 por Fernando Haddad. O plano previa a criação de uma rede de 400 km de vias cicláveis até o final da gestão, em dezembro de 2016. Na ocasião, São Paulo tinha até então pouco mais de 63 km de faixas exclusivas. O ritmo de implementação impressiona: hoje já são 451 km entre ciclovias, ciclofaixas e ciclorrotas. E os bicicletários, localizados em terminais de ônibus e estação de metrô, também foram ampliados.
Foi Maluf que fez
A primeira execução de uma ciclovia é da década de 90, sob comando do ex-prefeito Paulo Maluf, quando foram implantados 19 km dentro de parques. De lá para cá, Serra instalou a ciclovia da Radial Leste e as vias de passeio nas margens do Rio Pinheiros; Kassab inaugurou a da Faria Lima.
“Quando Haddad assumiu, a cidade estava devendo ciclovias desde a década de 90, ele fez o que ninguém teve coragem de fazer, enfrentou essa inércia”, afirma Renata Falzoni.
Carlos Aranha, da Rede Nossa São Paulo, percebe mais do que um movimento. Para ele, foi a primeira vez que a cidade realmente começou a se abrir para debater publicamente políticas cicloviárias. "São várias mudanças, inclusive de mentalidade. E houve bastante espaço para debater com a sociedade e com diferentes organizações o que elas desejam pra São Paulo, qual é a cidade que elas querem morar".
"É quase natural que, por ter nascido numa geração que acreditava no automóvel como símbolo de eficiência, status e conforto, qualquer iniciativa que fuja desse modelo receba uma reação negativa. Do jeito que está o trânsito hoje, ninguém está feliz. Mas o trânsito está ruim justamente porque estamos insistindo nesse modelo. Pra quê continuar nele? Estamos discutindo a quebra do paradigma", analisa Carlos.
E complementa: "Até hoje muitos municípios por aí, inclusive cidades grandes como o Rio de Janeiro, ainda patinam pra tentar entender isso, apesar de a política ser claríssima. Por isso, São Paulo ainda é o melhor exemplo do país."
Nova York e Bogotá
As mudanças em São Paulo não estão isoladas do resto do mundo. O incentivo ao uso de bicicletas é uma iniciativa pública de diversas cidades estrangeiras, como Nova York. Nos Estados Unidos, a primeira ciclovia foi inaugurada em Nova York, em 1894, 32 anos depois da primeira do mundo, em Paris. “É uma cidade que não teve medo de questionar o modelo de urbanização. Passado o primeiro grito de medo, as pessoas começam a redescobrir a cidade delas”, afirma Carlos Aranha. “A cidade é mais bonita com pessoas do que com carros”.
Outra cidade que expandiu seu sistema cicloviário recentemente foi Bogotá. A capital da Colômbia tem 392 km de ciclovias e 232 deles foram construídos entre 1998 e 2000, durante o governo do prefeito Enrique Peñalosa. Antes de sua gestão, havia somente 8 km implantados. Dados do Steer Davies and Gleave & Centro Nacional de Consultoría, mostram que que em 2014 mais de 86,431 toneladas de dióxido de carbono deixaram de ser emitidos na capital colombiana.
De volta a São Paulo, ainda há mais duas considerações sobre o futuro da Avenida Paulista: a ciclovia não dará conta do fluxo que vai dominá-la e a avenida deverá fechar aos domingos para lazer.
O secretário Jilmar Tatto diz que pelas contas da Prefeitura já dobrou a quantidade de ciclistas na região e na própria ciclovia, mesmo antes da inauguração. Carlos Aranha vai além: “em seis meses a gente vai perceber que ela não dá conta da demanda, principalmente quando tiver conexões com a Vergueiro, o lado oeste da cidade e as descidas para centro e bairro”.
Carlos resume a questão: “São as pessoas que emprestam o espaço para carros durante a semana inteira, há diversidade e espaço para todos. Estamos apenas tentando restituir o direito de as pessoas de estarem nas ruas. A ideia de cidade é viver coletivamente."
Matéria originalmente publicada no portal da Carta Capital