Em Seul, um dos mais bem-sucedidos casos de recuperação de um rio urbano diminuiu os efeitos da ilha de calor, reduzindo a temperatura da região em até 5ºC.
Por Julio Lamas, da National Geographic Brasil
Uma relação mais saudável entre o homem e a água nas cidades, segundo o ecólogo e limnólogo José Galizia Tundisi, começa no entendimento mais básico do ciclo hidrológico. "A água que chega à sua torneira é a mesma de milhões de anos atrás em um movimento contínuo entre suas fases sólida, líquida e gasosa. Quando chove, parte evapora ou penetra nas superfícies para formar reservas subterrâneas nos lençóis freáticos ou aquíferos, realimentando o ciclo. No entanto, as grandes áreas urbanas e a falta de permeabilidade do solo que elas oferecem com o excesso de asfalto degradam de tal maneira essa função do ‘software da natureza’ que a água ou nunca passa da superfície ou chega poluída na terra", argumenta o professor de engenharia da Universidade de São Paulo (USP).
Na capital paulista, afirma Tundisi, um planejamento urbano voltado para o transporte motorizado individual, a especulação imobiliária e a falta de áreas verdes preservadas são elementos colaborativos da atual crise hídrica. Segundo ele, a má conservação das matas próximas ao Sistema Cantareira, principal reservatório da cidade, por exemplo, podem ter contribuído para a baixa taxa de reservação durante a crise. Nenhuma surpresa nisso. Um estudo recente da Fundação SOS Mata Atlântica indica que restam apenas 21,5% da vegetação nativa da bacia hidrográfica do conjunto de represas do sistema, ameaçadas pelo avanço de bairros próximos e invasões. "A ocupação desorganizada, a retificação de rios e a pavimentação de córregos e ribeirões para abrir espaço a obras rodoviárias, caso das marginais Tietê e Pinheiros, cobram seu preço agora", diz Tundisi.
Circulam pela cidade de São Paulo cerca de 5 milhões de veículos diariamente, que respondem por 90% das emissões de gases de efeito estufa, em uma área de 1,5 bilhão de metros quadrados. Apenas 42 milhões de metros quadrados, menos de 3% do total, correspondem a áreas verdes. "Para ter uma ideia da dimensão do problema da impermeabilização, considere que o Coeficiente de Escoamento – índice que mostra a relação entre o volume da chuva que escoa superficialmente e o volume que infiltra no terreno – em São Paulo está em torno de 85%. Ou seja, boa parte do volume de uma chuva escoa superficialmente, comprometendo rapidamente o sistema de drenagem e gerando problemas como erosões e assoreamentos nos rios", afirma o geólogo Álvaro Rodrigues dos Santos, autor do livro Enchentes e Deslizamentos: Causas e Soluções (PINI, 2012). "Numa floresta ou bosque florestado urbano, acontece o contrário durante um temporal, o Coeficiente de Escoamento fica em torno de 15%. Logo, cerca de 85% do volume das chuvas é retido, contribuindo para alimentar o lençol freático", conclui.
Apresentado recentemente, um estudo da ONU estima que o consumo de água potável no planeta deve crescer mais de 400% até 2050. Antes disso, em 2030, a expectativa é que haja um déficit de 40% no abastecimento. "Não há dúvidas entre os especialistas de que essa realidade futura impõe para governantes e urbanistas um novo paradigma de como lidar com as reservas de água nas cidades. O desafio é fazer isso de modo sustentável, equilibrando a demanda por moradias e transporte com resiliência em um mundo de clima mais inóspito", afirma a arquiteta americana Mia Lehrer, uma das autoras do Plano Diretor de revitalização do rio Los Angeles, na Califórnia. O rio passa ao lado de 390 mil residências e 80 mil empresas, mas de sua vazão de 6,4 metros cúbicos por segundo quase nada é usado para o consumo humano, pois a água está poluída, entre outros, por agrotóxicos e efluentes urbanos. Hoje, com investimentos de 1 bilhão de dólares em parques, trilhas e áreas verdes com mata nativa, Los Angeles tem como objetivo até 2020 fazer uso mais uma vez de sua água enquanto atravessa sua pior seca histórica. "Melhor que pôr um filtro no final de um cano é usar a natureza para isso por meio de um parque, várzea ou pântano preservados", afirma Lehrer.
"No entanto, executar projetos como a recuperação de um rio na cidade pode representar um custo político alto. No começo, as pessoas criam resistência a ideias como essa, pois elas vão de encontro a interesses imobiliários ou tiram espaço dos automóveis, como foi com Seul", pondera o urbanista sul-coreano In Keun Lee, ex-secretário de Planejamento e Infraestrutura do governo metropolitano de Seul, sobre os desafios de um dos mais bem-sucedidos cases globais de recuperação de um rio urbano, o Cheonggyecheon. Vítima de um processo acelerado de urbanização e industrialização, o rio acabou poluído após o desmatamento de suas margens, já na década de 1940, e se tornou um obstáculo na expansão da cidade pelas enchentes frequentes.
A resposta encontrada pelos governantes, em 1961, foi pavimentá-lo, transformando-o em uma importante via de acesso da capital sul-coreana. "Dez anos após escondê-lo sob o asfalto, a cidade construiu uma rodovia elevada por cima dessa via. Como em São Paulo, o resultado no longo prazo originou uma cidade estagnada pelo excesso de veículos, ameaçada por um ar perigosamente poluído e com déficit de áreas verdes", conta Lee. Em 2000, o governo local se viu obrigado a investir em uma reforma da obra rodoviária. "Para consertar o problema estrutural do elevado, estimava-se um investimento de 95 milhões de dólares, mas esse gasto jamais seria o suficiente para atender à real demanda. A decisão foi ousada e bastante contestada na época. Gastamos 367 milhões de dólares, derrubamos o elevado, investimos em linhas de ônibus exclusivas e recuperamos o curso do Cheonggyecheon e sua biodiversidade natural", lembra.
A ideia não era apenas ressuscitar o coração verde de Seul, e sim criar um novo símbolo de identidade para a cidade no século 21, afirma In Keun Lee. Realizado entre 2003 e 2005, o projeto transformou a área asfaltada em um parque de quase 5,3 quilômetros junto ao curso do rio, que recebe diariamente cerca de 60 mil pessoas. "Entre obras de mobilidade voltadas para o transporte público, novas políticas de estacionamento e a volta do Cheonggyecheon à superfície com o parque, cerca de 170 mil carros foram tirados do centro da cidade. Com a redução do tráfego, conseguimos cortar pela metade as emissões dos veículos e reduzir a temperatura da região em até 5 ºC, diminuindo os efeitos da ilha de calor urbano em Seul. Hoje, a cidade está mais preparada para lidar com enchentes e as mudanças climáticas", diz Lee. De acordo com ele, São Paulo poderia trabalhar com conceitos semelhantes, combinando planejamento de mobilidade e recuperação de rios, mas teria de controlar também ocupações desordenadas em áreas de mananciais. "O desafio não é apenas aumentar a rede de tratamento de esgoto que vai para os rios, mas também encontrar uma fórmula de urbanismo que atenda à demanda por moradia em áreas como as represas Billings e Guarapiranga e conserve a água limpa", afirma o sul-coreano.
Matéria originalmente publicada no portal Planeta Sustentável