Trabalho encomendado por associação aponta que o número de viagens individuais deve passar de 111.586 por dia para 149.086 com ampliação comercial prevista em nova lei; especialista vê risco de degradação e fuga de moradores do bairro.
Por Juliana Diógenes e Mônica Reolom
As mudanças sugeridas pela Prefeitura de São Paulo para a nova Lei de Zoneamento devem piorar significativamente o trânsito nos Jardins. O bairro deve passar a liderar o ranking de viagens individuais – feitas com carros, motos e táxis – entre os 96 distritos da capital. O motivo é o aumento no número de comércios, serviços e residências, que deve ser autorizado na Zona de Estruturação Urbana, que engloba os trechos entre as Avenida Paulista e Brasil e entre Rebouças e Brigadeiro Luís Antônio, em Cerqueira César.
É o que consta da análise de impacto no trânsito encomendada pela Sociedade dos Amigos, Moradores e Empreendedores do Bairro de Cerqueira César (Samorcc) ao arquiteto, urbanista, consultor de trânsito e transporte Flamínio Fichmann. O número de viagens hoje em transporte individual na região é de 111.586 por dia. Com a nova Lei de Zoneamento, o bairro passaria a ter 149.086 viagens por dia em uma área de apenas 3,8 quilômetros quadrados.
O resultado foi apresentado nesta quinta-feira, 27, no Colégio Dante Alighieri, na área da Avenida Paulista.
Foram exibidas ainda análises jurídicas, ambientais e urbanísticas da Lei de Zoneamento. Com a nova determinação de Zona de Estruturação Urbana, que substitui o enquadramento atual, o que muda são as densidades construtivas e demográficas, que passarão a ser “altas”. “Com esse incremento de viagens, o sistema viário não terá condições de absorção. Então, isso vai produzir grandes congestionamentos e essa região tende a deteriorar. Ficará absolutamente comprometida”, explicou o autor do estudo.
Segundo a análise de Fichmann, Cerqueira César ocupa a sexta posição no adensamento por viagens individuais na capital. Os efeitos serão sentidos cinco anos após a aprovação da nova Lei de Zoneamento, explica. A região se transformará na mais adensada para carros da cidade, ultrapassando Bela Vista, República, Sé, Jardim Paulista e Consolação. “Cerqueira César, passando a liderar, vai assumir características semelhantes a esses bairros, que já perderam o seu valor e foram descaracterizados”, afirmou o consultor.
Quando se considera o transporte como um todo – coletivo e individual -, também há piora prevista, mas menor. A expectativa é de que a soma total de viagens diárias passe de 330.643 para 479.643. Dessa forma, Cerqueira César passaria a Consolação, passando a figurar em quarto no ranking geral de congestionamentos nos 96 distritos. Ficaria atrás, pela ordem, de República, Sé e Bela Vista. No entanto, há um fator a ser considerado: os números levam em consideração apenas a evolução de Cerqueira César e não a dos demais bairros – que também podem sofrer influências da mudança na legislação.
De acordo com Fichmann, a deterioração será “gradativa”, com movimentação do setor empresarial para edificar construções na região. Hoje com 144 mil empregos, o bairro ganhará mais 46 mil postos de trabalho. “Teremos um crescimento de 32% em empregos. E isso significa 32% de viagens a mais.” Com mais veículos e, portanto, mais congestionamentos, a tendência é de que os moradores se retirem do bairro. As residências darão lugar ao comércio, que ganhará de 1 milhão a 3 milhões de metros quadrados da área.
Em nota, a Prefeitura disse que a Secretaria de Desenvolvimento Urbano está avaliando as questões e demandas levantadas. “A ideia é avaliar esses e outros questionamentos que venham a surgir em conjunto com a sociedade, na nova rodada de audiências públicas, bem como com os vereadores e líderes do governo na Câmara”, informou.
Zona de amortecimento
A exclusão de uma faixa de 40 metros da Rua Estados Unidos, nos Jardins, para fins de zoneamento, também é questionada pela associação de moradores. Marcelo Manhães de Almeida, advogado especializado em Direito Urbanístico e contratado pela Samorcc para realizar as análises jurídicas da nova lei, questionou a medida.
A via representa uma transição entre o adensado bairro de Cerqueira César e os Jardins e, desde 1972, foi prevista ali uma “zona de amortecimento”, faixa de 40 metros onde são vetadas construções acima de dois andares. Pela proposta em tramitação, a restrição deixa de existir, devendo apenas ser respeitado o lote lindeiro – aquele cuja frente é para a Estados Unidos. Imóveis com saídas para ruas laterais poderão receber prédios sem limite de gabarito. “O Plano Diretor, de 2014, determina que a nova Lei de Zoneamento não pode ser menos restritiva que a anterior em regiões como a Rua Estados Unidos. Assim, todas as restrições devem ser mantidas.”
O vereador Andrea Matarazzo (PSDB), líder da oposição na Câmara, disse que seu sonho é impedir a aprovação da lei.
Mudança há 20 anos
Para o diretor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo do Mackenzie, Valter Caldana, os Jardins deixaram de ser um bairro exclusivamente residencial há mais de 20 anos, quando os motoristas, orientados pela Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), começaram a utilizar ruas como a Haddock Lobo, Bela Cintra, Estados Unidos e Gabriel Monteiro da Silva para fugir dos congestionamentos das Avenida Rebouças, Brasil e Nove de Julho.
“Quando se transferiu o trânsito, transformou-se as ruas também em comerciais e não deteriorou a região”, explicou. “As zonas exclusivamente residenciais começaram a ser destruídas no fim da década de 80. Vias locais, de bairro, foram transformadas em coletoras.”
De acordo com ele, o que os moradores da região precisam fazer é exigir que a Lei de Zoneamento estabeleça “parâmetros de incomodidade” como, por exemplo, limitar as vagas de estacionamento em comércios. Ele afirma que hoje, o número de viagens individuais já é alto na região dos Jardins.
“Não interessa a atividade, mas o quanto ela incomoda, que é a questão principal e deixa a discussão mais amena e superável se a lei vier com essa configuração”, afirmou.
O urbanista discorda que a mudança na lei vai aumentar a presença de carros e motos nos Jardins. “Tem novos meios de transporte chegando na região com as estações da Linha 4-Amarela do Metrô.” Na visão de Caldana, uma maior quantidade de comércios poderia, inclusive, diminuir as viagens individuais no bairro. “O morador não vai precisar sair de carro para comprar pão ou ir ao supermercado.”
Matéria originalmente publicada no jornal O Estado de S. Paulo