Vizinhos de represas se ‘apropriaram’ de trechos do manancial, que está aberto, para criar gado; ambientalistas temem degradação.
Por Fabio leite
Entregue à estiagem, o Sistema Cantareira não para de encolher. Após dois anos sem água, braços das represas Jaguari-Jacareí, consideradas o coração do principal manancial paulista, desapareceram debaixo dos arbustos que brotaram no solo seco e a sensação de que a situação nunca mais voltará ao normal tem levado vizinhos das barragens em Bragança Paulista, Joanópolis e Piracaia, no interior de São Paulo, a se “apropriarem” de trechos do reservatório para criar gado.
“Tinha tanta água que o pessoal pulava daquela ponte. Infelizmente, acho que esse tempo não volta mais. A gente já está até pensando em cercar uma parte dessa área aqui para soltar o gado para tirar leite”, contou José Roberto Luiz, de 44 anos, caseiro de uma chácara à margem da Represa Jacareí, em Piracaia, a 90 quilômetros da capital. A ponte em questão é o trecho da Rodovia José Augusto Freire (SP-036) sobre o reservatório, que liga a cidade a Joanópolis. Antes da crise, o nível da água batia os 18 metros de altura.
Em abril de 2014, quando o sistema tinha 11,5% da capacidade, ainda antes da estreia do volume morto, o local foi palco de um ato em defesa do manancial. Cerca de 300 pessoas se reuniram debaixo da ponte para um abraço simbólico do Cantareira. À época, as duas barragens, que respondem por 78% do estoque de água do sistema, tinham apenas 3,7%. Hoje, com nível 19% negativo e o braço tomado pela vegetação, o protesto, lá, seria impossível.
As barragens Jaguari-Jacareí começaram a ser construídas em 1977 e entraram em operação em maio de 1982. Antes da crise, forneciam dois terços dos 33 mil litros por segundo que a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) retirava do sistema para abastecer cerca 8,8 milhões de pessoas na região metropolitana. Hoje, a captação é 58% menor. Não é possível saber quanto dos 50 km² de área inundável do reservatório já sumiu do mapa. Mas, para especialistas, é fato que a vegetação e a ocupação dificultam a recuperação do manancial.
“Quando a água voltar, essa vegetação vai ficar submersa, morrer e se decompor, o que pode impactar a qualidade da água. Se for algo muito extenso, pode trazer consequências mais graves. Cabe um monitoramento forte dessas áreas para ver se é necessário fazer a remoção”, afirma Mário Barroso, superintendente de conservação da ONG internacional WWF.
Ele teme que uma estiagem duradoura na região acabe atraindo uma “invasão urbana” ao reservatório. “A ocupação por animais é difícil de controlar. Se não for intensa, se não tiver porco, mas só cavalo e vaca, não é tão grave. O grande problema é se as pessoas começarem a invadir a represa. Esse é o maior risco e traria consequências mais negativas. Teoricamente, essas áreas deveriam estar cercadas, mas não estão”, completa Barroso.
Desde as cheias de 2010 e 2011, quando a Sabesp chegou a abrir as comportas de outras represas do sistema para evitar o transbordamento dos reservatórios, as barragens Jaguari-Jacareí, que são abastecidas pelos rios que nascem no sul de Minas Gerais, têm sofrido com vazões muito baixas. Segundo dados da Agência Nacional de Águas (ANA), nos últimos dez anos as duas represas receberam 17,3% menos água do que na média histórica observada entre 1930 e 2003.
Para o especialistas em recursos hídricos Samuel Barrêto, da ONG The Nature Conservancy (TNC), o crescimento da vegetação nos braços das represas provocado pela estiagem compromete a área útil do maior sistema de abastecimento de água de São Paulo. “Dependendo da situação, a água pode nem voltar mais para a região. Talvez seja necessário fazer uma remoção para deixar um espaço disponível para reservação no período de chuvas”, afirma.
Mais volume morto. Segundo a Sabesp, “o crescimento das gramíneas nas áreas onde as águas baixaram nas represas é absolutamente normal e já esperado nos períodos de seca”. De acordo com a companhia, o fato “não causa nenhum obstáculo à recuperação dos mananciais”. Diante do agravamento da seca no manancial em agosto, a Sabesp já abriu licitação para contratar serviços para a captação do volume morto por mais um ano.
Matéria originalmente publicada no jornal O Estado de S. Paulo